Eu lembro

por Roberta AR

Existe uma frase atribuída à atriz Ingrid Bergman em que ela afirma que “felicidade é boa saúde e péssima memória”. Se eu fosse basear minha vida nesta frase, poderia ser considerada uma das pessoas mais infelizes do mundo.

Sim, meu nome é Roberta e eu me lembro.

Tenho boa memória desde muito cedo e, ao mesmo tempo, a saúde assolada por gripes constantes, alergias, uma sinusite que me acompanha há vinte anos recém completados, fora as sequelas de uma hepatite infantil e de uma gastrite nervosa na adolescência. Mas, apesar de não parecer, é sobre a memória que quero falar aqui.

É claro que é impossível alguém lembrar de cada detalhe de cada coisa que vive. Sempre estamos sob a influência de uma emoção forte, ou do desdém, ou de um remédio para gripe, ou de qualquer outro tipo de droga ou sensação. Não é possível estar cem por cento concentrado em tudo o que acontece e lembrar de cada detalhe. E, na verdade, isso realmente não importa, o que importa é o que fica de cada experiência, aquilo que lembramos.

Waly Salomão dizia que “a memória é uma ilha de edição”. A gente corta e edita tudo o que lembra e só nos lembramos do que é preciso. Preciso para quê? Para sobreviver, para não sofrer de novo, para saber o que dá prazer e o que causa dor, resumindo um bocado.

Por lembrar, tenho sido rotulada (sim, com uma etiqueta bem grande na testa) de rancorosa. Algumas vezes, apenas de “crítica demais”, mas de rancorosa com muito mais frequência.

E o que é que eu lembro que causa tanto incômodo? Lembro de frases pontuais, como a de um representante de um grupo em que eu estava tentando me inserir que me disse que eu não faço parte “dos de sempre”. “Você não tem estilo de vida adequado para criança” foi dito por um grávida que insinuou diversas vezes que não me queria por perto quando seu filho nascesse. Um chefe me perguntou “você não pensa, não?”. E  meu pai, “você pensa que você é gente?”. Eu nunca esqueci.

Lembrar não é um ato passivo. Quando eu me lembro, não deixo que a coisa se repita. Daí, recordo da raiva, ou da mágoa, que aquilo me causou e que não quero que aconteça de novo. Isso não quer dizer que não tenha superado e que ainda esteja com raiva ou magoada (ninguém sobrevive muito tempo neste estado), apenas que eu não quero que a situação se repita, porque, afinal de contas, eu já passei por ela uma vez e aprendi a lição. Eu ajo neste sentido e sou chamada de rancorosa.

Mas nem só de dor é composta minha memória. Também me lembro do cheiro das coisas, das pessoas e dos lugares, da sensação que certas músicas me causam, do gosto das minhas comidas favoritas, do estremecimento que senti ao ver alguns quadros de pertinho…

O fato de eu me lembrar das coisas pode parecer absolutamente contraditório, porque nós brasileiros somos sempre tratados (por nós mesmos) como um povo que tem memória curta. Isso sempre é citado quando se fala de política e, principalmente, da permanência de certas figuras nos centros de poder por meio do voto. Paulo Emilio Salles Gomes afimou que “o Brasil se interessa pouco pelo passado. Essa atitude saudável exprime a vontade de escapar a uma maldição de atraso e miséria”, no início do seu livro Cinema: Trajetória no subdesenvolvimento. O que seria uma atitude saudável, de desprezo à dor, é considerada pelo senso comum ignorância e submissão

Então ficamos num impasse: se uma pessoa lembra, é porque é rancorosa, se um povo não lembra, é porque é alienado.

Eu não tenho resposta para isso, mas é algo que precisa ser pensado. O rancor de um povo pode surgir exatamente por certas dores coletivas serem simplesmente ignoradas e acabar causando caos e destruição, da mesma forma que a dor de um indivíduo. Em contrapartida, a obsessão pela dor, também.

Concluo, aqui, que é preciso lembrar, para não reviver o sofrimento, e esquecer, para poder superar e seguir em frente. Como? Esse é o delicado equilíbrio que é responsabilidade de cada um e de todos nós.

3 comentários em “Eu lembro

  1. Hoje pude finalmente passar pelo Facada e fui gratificado com esse belo texto. Que bonito, Beta! E, olha, não tanto quanto você, mas eu lembro também, viu: e lembro que você lembra? Lembra?
    Bacio.
    Até.
    Adriano.

  2. Como disse no comentário do Google Reader, o tema “memória” é intrigante e muito caro pra mim. Sou capaz de lembrar nome de atores desconhecidos, mas apago conversas que tive no ano passado com um dos meus melhores amigos sobre a morte do avô dele… Minha irmã também reclama muito de não recordar sistematicamente de enredos de livros ou filmes. Tenho muitas memórias que não gostaria de esquecer, mas quando menos perceber sei que já terão ido. Um Leonard prestes a ser enganado por Natalie. E, sim, precisei recorrer ao IMDB para lembrar dos nomes dos personagens de Memento Mori. It is what it is.

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