Cidadela (trecho)

por Antoine Saint-Exupery*

“A justiça, na minha maneira de ver – disse-me meu pai – está em honrar o depositário por causa do depósito. Tanto como honro a mim próprio. Porque reflete a mesma luz. Por muito pouco visível que seja nele. A justiça é considerá-lo como veículo e como caminho. A minha justiça é fazer nascer de si próprio.

“Mas enche-me de tristeza ver tamanha podridão nesse esgoto que se perde no mar. Deus encontra-se tão desfigurado… Espero deles o sinal que me mostrará o homem, e nunca vem.”

“E, no entanto – retorqui eu a meu pai -, vi este ou aquele partilharem o pão e ajudarem outro mais corrompido do que eles a descarregar um saco ou acolher por piedade uma criança doente…

“Põem tudo em comum – respondeu meu pai – e é a isso que chamam caridade. Eles partilham. Mas nesse pacto, que também os chacais sabem fazer em volta de uma carcaça, propõem-se celebrar um grande sentimento. Querem-nos fazer crer que há um doação nisso! Mas o valor da dádiva depende daquele a quem se dirige. E, no nosso caso, dirige-se ao mais baixo. Como o álcool ao bêbado que bebe. Assim a dádiva é doença. Mas se eu dou a saúde, nessa altura corto neste corpo ferido… e ela me odeia.

“Chegam ao ponto – acrescentou ainda meu pai – de, com toda a sua caridade, preferirem a podridão… Mas e se eu prefiro a saúde.?”

“Quando te salvarem a vida, continuou meu pai, não agradeças nunca. Não leves longe demais o teu agradecimento. Se aquele que te salvou está à espera do teu agradecimento – o que aliás é grande baixeza, afinal que pensa ele? Ter-te servido? Foi a Deus que ele serviu ao guardar-te, se porventura vales alguma coisa. E tu, se exprimes com exuberância demais o teu agradecimento, pecas contra a fé, a modéstia e a humildade. Porque o importante que ele salvou não foi o teu pequeno destino pessoal, mas sim a obra em que tu colaboras e se apóia também sobre ti. E como ele está submetido à mesma obra, não tens por que agradecer-lhe. Quem lhe agradece é o seu próprio trabalho de te ter salvado. É aí que reside a sua colaboração na obra.”

“Demonstras também orgulho se te submetes às suas emoções mais vulgares. E se o elogias na sua pequenez, fazendo de ti seu escravo. Porque, se ele se fosse nobre, rejeitaria o teu agradecimento.

“Não há nada que me interesse tanto – era de novo meu pai quem falava – como a admirável colaboração de um através de outro. Posso servir-me de ti ou da pedra. Quem é que demonstra agradecimento à pedra por ter servido de fundamento ao templo?

“Mas eles não colaboram noutra coisa que neles próprios. E este esgoto que se perde no mar não alimenta cânticos, nem dá origem a estátuas de mármore, nem é caserna para as conquistas. Para eles, só é questão de partilharem o melhor possível as provisões. Não te deixes enganar. As provisões são necessárias, mas mais perigosas do que a fome.

“Dividiram tudo em dois tempos: a conquista e o gozo. Nem um nem outro tem o mínimo significado. Viste por acaso a árvore crescer e, uma vez já grande, se impor sobre outra árvore? A árvore cresce, muito simplesmente. É o que eu te digo: aqueles que, depois de terem conquistado, se fazem sedentários, já estão mortos…”

A caridade, de acordo com o sentido do meu império, é colaboração.

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*Antoine-Jean-Baptiste-Marie-Roger Foscolombe de Saint-Exupéry (1900 —  1944) foi um escritor, ilustrador e piloto francês, terceiro filho do conde Jean Saint-Exupéry e da condessa Marie Foscolombe. Aqui publicamos um trecho de seu último romance, Cidadela.