por Francisca Júlia da Silva*
A Florista
Suspensa ao braço a grávida corbelha,
Segue a passo, tranquila… O sol faísca…
Os seus carmíneos lábios de mourisca
Se abrem, sorrindo, numa flor vermelha.
Deita à sombra de uma árvore. Uma abelha
Zumbe em torno ao cabaz… Uma ave, arisca,
O pó do chão, pertinho dela, cisca,
Olhando-a, às vezes, trêmula, de esguelha…
Aos ouvidos lhe soa um rumor brando
De folhas… Pouco a pouco, um leve sono
Lhe vai as grandes pálpebras cerrando…
Cai-lhe de um pé o rústico tamanco…
E assim descalça, mostra, em abandono,
O vultinho de um pé macio e branco.
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A Fonte de Jacó
Na velha Samaria era Sicar situada;
Ora, em Sicar, Jacó—, filho de Isac, um dia,
Velho já, tarda a mão, à sua gente amada
Uma fonte rasgou d’água límpida e fria.
O Mestre, certa vez, a essa borda abençoada,
(No tempo de Jesus a fonte inda existia)
À hora sexta quedou-se, a fronte angustiada
De dor, a ver passar gentes de Samaria.
Uma Samaritana, acaso, à fonte veio;
E ao passar por Jesus, com seu cântaro cheio,
O alto busto ondulou numa graça lasciva…
— Água! pediu Jesus, mata-me a sede e a mágoa!
Do cântaro, que tens, dá-me uma pouca d’água
Que, em troca, eu te darei da fonte d’água viva.
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A Ondina
Rente ao mar, que soluça e lambe a praia, a ondina,
Solto, às brisas da noite, o áureo cabelo, nua,
Pela praia passeia. A alvacenta neblina
Tem reflexos de prata à refração da lua.
Uma velha galeta encalhada, a bolina
Rota, pompeia no ar a vela, que flutua.
E, de onda em onda, o mar, soluçando em surdina,
Empola-se espumante, à praia vem, recua…
E, surgindo da treva, um monstro negro, fito
O olhar na ondina, avança, embargando-lhe o passo…
Ela tenta fugir, sufoca o choro, o grito…
Mas o mar, que, espreitando-a, as ondas avoluma,
Roja-se aos pés da ondina e esconde-a no regaço,
Envolvendo-lhe o corpo em turbilhões de espuma.
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*Francisca Júlia César da Silva Münster (1871 – 1920) foi uma poetisa brasileira. Nasceu em Xiririca, hoje Eldorado Paulista. Colaborou no Correio Paulistano e no Diário Popular, que lhe abriu as portas para trabalhar em O Álbum, de Artur Azevedo, e A Semana, de Valentim Magalhães, no Rio de Janeiro. Foi lá que lhe ocorreu um fato bastante curioso: ninguém acreditava que aqueles versos fossem de mulher e o crítico literário João Ribeiro, acreditando que Raimundo Correia usava um nome falso, passou a “atacá-lo” sob o pseudônimo de Maria Azevedo. No entanto a verdade foi esclarecida após carta de Júlio César da Silva enviada a Max Fleiuss. A partir daí João Ribeiro empenha-se para que o seu primeiro livro seja publicado e, em 1895, Mármores sai pela editora Horácio Belfort Sabino. Já a essa altura era Francisca Júlia considerada grande poetisa nos círculos literários.