Uma vítima

por Délia*

I

Na sala de um dos melhores colégios de meninas desta Corte, acham-se: a diretora, francesa de quarenta anos, simpática e amável e o Dr. Caetano Pinto, distinto jurisconsulto, deputado geral, fisionomia inteligente, fronte altiva, maneiras irrepreensíveis – perfeito gentleman.

– Sua filha é um tesouro, senhor, e foi a minha melhor discípula, disse a francesa. O deputado sorria comovido e ia responder, quando a filha assomou à porta.

Era uma mocinha de 15 anos, esbelta, fresca, adorável em sua toilette de crepe-paille1; vinha corada, com os olhos úmidos e uma sombra de melancolia no peregrino semblante.

Lúcia acabava de despedir-se de suas companheiras de estudos e das professoras que a prezavam; deixava essa habitação calma, onde a vida corria pautadamente e ia internar-se no bulício da sociedade.

A alma cândida da donzela estremecia ante o desconhecido, ante o problema do futuro.

O pai foi-lhe ao encontro, abraçou-a e beijou-a. -Então, filhinha! sê forte! ainda me queres privar mais tempo da tua companhia? Virás sempre ver tuas amigas e reviver os anos da infância. Isto não é um desterro!

Lúcia lhe sorria por entre lágrimas; abraçou a diretora, que se sensibilizou, seguiu o pai e entraram na elegante vitória, que partiu a trote largo.

Caetano Pinto casara aos vinte e cinco anos com Melania Amália Costa, interessante diabrete de quinze anos, que o enfeitiçara para sempre.

Era Caetano filho único do desembargador Manoel Pinto, íntegro magistrado, homem de vastos conhecimentos e grossa fortuna.

A mãe, idólatra, grave e inteligente, guiou-o desde a infância na senda do bem, da virtude e da honra.

O feliz mancebo herdara as qualidades do pai e os ternos e elevados sentimentos da mãe: reunia em si a essência desses dois seres, extremamente afetuosos e bons.

Formou-se em direito, pagou à literatura o seu juvenil tributo em versos de rendilhado lirismo e entregou-se à advocacia.

Desfrutava a vida alegremente; teve aventuras de rapaz bonito, portou-se galhardamente para com as mulheres, que o distinguiram, e no dia em que se sentiu preso à imagem de Melania, pôde encarar o passado sem pejo e sem remorso.

Desposou a galante criatura e, um ano depois, era pai da pequena Lúcia.

Sua alma de poeta curvava-se extasiada e trêmula, ante o berço da menina, linda, mimosa; seu terno coração criava um mundo à parte, onde a filha deveria encontrar, mais tarde, olímpica felicidade. Melania não pôde criá-la. Caetano desvelava-se em adular e presentear a alemã, que amamentava Lúcia: nada faltava à boa mulher, que alegremente lhe dava o leite, e ficou no fim da criação com o futuro garantido.

À instâncias da mulher, Caetano foi à Europa, deixando Lúcia com a avó: custou-lhe muito deixar a filha, porém Melania tão porfiadamente lhe demonstrou os incômodos de uma longa travessia com a menina, e realçou o devotamento da sogra, que ele cedeu às razões da mulher e aos protestos de sua mãe: beijou loucamente a criança e embarcou, saudoso.

Durante dois anos percorreu as capitais européias, admirando o belo, mas sempre pensando na filha: às vezes parecia-lhe que Melania amava friamente a menina, porém seu apaixonado coração imediatamente a defendia, levando essa indiferença à conta da leviandade da moça.

E, com maior meiguice ainda, cercava a mulher de carinhos e desvelos; concluía, culpando-se de haver desposado uma criança.

 Este é o primeiro capítulo do livro Uma vítima, que pode ser lido na íntegra ao clicar neste link (em pdf)

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*Maria Benedita Câmara Bormann (1853 – 1895), conhecida pelo pseudônimo Délia, foi uma cronista, romancista, contista e jornalista brasileira.