A volta

por Lima Barreto*

O governo resolveu fornecer passagens, terras, instrumentos aratórios, auxílio por alguns
meses às pessoas e famílias que se quiserem instalar em núcleos coloniais nos Estados de
Minas e Rio de Janeiro.
Os jornais já publicaram fotografias edificantes dos primeiros que foram procurar
passagens na chefatura de polícia.
É duro entrar naquele lugar. Há um tal aspecto de sujidade moral, de indiferença pela
sorte do próximo, de opressão, de desprezo por todas as leis, de ligeirezas em deter, em
prender, em humilhar, que eu, que lá entrei como louco, devido à inépcia de um delegado idiota,
como louco, isto é, sagrado, diante da fotografia que estampam os jornais, enchi-me de uma
imensa piedade por aqueles que lá foram como pobres, como miseráveis, pedir, humilhar-se
diante desse Estado que os embrulhou.
Porque o Senhor Rio Branco, o primeiro brasileiro, como aí dizem, cismou que havia de
fazer do Brasil grande potência, que devia torná-lo conhecido na Europa, que lhe devia dar um
grande exército, uma grande esquadra, de elefantes paralíticos, de dotar a sua capital de
avenidas, de boulevards, elegâncias bem idiotamente binoculares e toca a gastar dinheiro, toca
a fazer empréstimos; e a pobre gente que mourejava lá fora, entre a febre palustre e a seca
implacável, pensou que aqui fosse o Eldorado e lá deixou as suas choupanas, o seu sapé, o seu
aipim, o seu porco, correndo ao Rio de Janeiro a apanhar algumas moedas da cornucópia
inesgotável.
Ninguém os viu lá, ninguém quis melhorar a sua sorte no lugar que o sangue dos seus
avós regou o eito. Fascinaram-nos para a cidade e eles agora voltam, voltam pela mão da
polícia como reles vagabundos.
É assim o governo: seduz, corrompe e depois… uma semicadeia.
A obsessão de Buenos Aires sempre nos perturbou o julgamento das coisas.
A grande cidade do Prata tem um milhão de habitantes; a capital argentina tem longas
ruas retas; a capital argentina não tem pretos; portanto, meus senhores, o Rio de Janeiro,
cortado de montanhas, deve ter largas ruas retas; o Rio de Janeiro, num país de três ou quatro
grandes cidades, precisa ter um milhão; o Rio de Janeiro, capital de um país que recebeu
durante quase três séculos milhões de pretos, não deve ter pretos.
E com semelhantes raciocínios foram perturbar a vida da pobre gente que vivia a sua
medíocre vida aí por fora, para satisfazer obsoletas concepções sociais, tolas competições
patrióticas, transformando-lhes os horizontes e dando-lhes inexeqüíveis esperanças.
Voltam agora; voltam, um a um, aos casais, às famílias para a terra, para a roça, donde
nunca deviam ter ido para atender tolas vaidades de taumaturgos políticos e encher de misérias
uma cidade cercada de terras abandonadas que nenhum dos nossos consumados estadistas
soube ainda torná-las produtivas e úteis.
O Rio civiliza-se!

Vida urbana, 26-1-1915

.

Afonso Henriques de Lima Barreto (Rio de Janeiro, 13 de maio de 1881 – Rio de Janeiro, 1 de Novembro de 1922), mais conhecido apenas como Lima Barreto, foi um jornalista e um dos mais importantes escritores libertários brasileiros.

Deixe um comentário