Manifesto do Cinema Periférico

por Tiago Penna*

Preâmbulo ao Manifesto do Cinema Periférico

Este manifesto, mais do que marginal, além de propor novas possibilidades estéticas no processo de criação cinematográfica; pretende sugerir (no modo de produção), meios de contornar e superar dificuldades e limitações excessivas de processos de produção demasiadamente deficitários quanto a recursos técnicos, ou carentes quanto a uma política psico-social favorável à execução cinematográfica.

O manifesto parece claramente herdar traços e sugestões do Dogma-95, mas engloba ainda propostas advindas do Teatro do Oprimido e suas inúmeras aplicações, vertentes e interpretações. Parece também refletir uma situação econômica desfavorável – se comparada a dos grandes centros da indústria cinematográfica – que ainda mais gravemente afeta nossa concepção de obra de arte, padronizando a um formato pré-moldado nosso fazer e entender a arte. Dissociando qualquer forma de ideologia livre ou cultura alternativa.

Por tudo isso, o manifesto parece incluir, mesmo que inconscientemente, outras concepções artísticas alternativas periféricas, como – no caso da música – o Mangue-Beat, que também herdou traços de outras concepções (como a Tropicália) e sugeriu novas tendências (como a estética Cyber-Punk); por isso alguns de seus refrões parecem estar nas “sub-linhas” da promulgação do manifesto como o universal: “Leve diversão a sério.” – proclamado pelo saudoso mestre Chico Sciense, ou pelo pragmático: “Não espere nada do centro, se a periferia está morta…” – recitado pelo célebre Mundo Livre S/A.

Podemos frisar que o manifesto concilia-se com a Teoria do Caos e sua matemática fractal… e com a Teoria da Evolução de Darwin; e ainda com os avanços na física quântica, e na astronomia moderna. E surpreendentemente ao dadaísmo e ao surrealismo.

É importante notar que, antes de serem doutrinárias, todas essas concepções artísticas visam aumentar as possibilidades de criação livre, e de produção independente; em oposição às normas e formas mercadológicas impostas pelo que parece ser uma ditadura cultural hegemônica. Então, pensemos que quando pensar é fazer, e digamos com nossas próprias palavras, o que é nosso próprio pensamento. E ampliemos horizontes… além de dar uma moeda, podemos (“Why not”?), ensinar às crianças que catam lixo, e às que moram nas ruas, que a partir disso elas podem criar, livremente; independentemente do que é apregoado pela televisão, e pelo sistema capitalista.

“Do it your-self. Make a movie!!!”
Manifesto do Cinema Periférico

Redator: Tiago Penna

1- A matriz inicial fílmica, ou seja, o suporte técnico de captação, poderá ser efetuado sobre qualquer tipo de equipamento que esteja à disposição, já existente ou que venha a ser criado, que propicie possibilidades de elaboração seqüencial de imagens distintas e de arranjos sonoros imagináveis, não importando assim a qualidade de realização imediata.

2- A trilha sonora deve ser executada imediato e simultaneamente à execução fílmica, de preferência por instrumentos tradicionais (“analógicos”), propiciando assim uma perfeita integração e ambientação de toda a equipe técnica com a linguagem estética proposta, potencializando incisivamente a atuação cênica dos atores, e conseqüente elaboração dos personagens.

2.1- Todo e qualquer elemento ou efeito sonoro, assim como todas as falas e diálogos dos personagens, devem ser executadas a partir de som direto; excluindo-se qualquer possibilidade de dublagem, edição ou mixagem posterior de som.

3- Todo e qualquer tipo de cenário ou adereço deve ser realista/naturalista, no sentido de não ter sido construído artisticamente com o intuito de compor-se a obra áudio-visual. Assim, qualquer locação deve corresponder a algum local, paisagem ou ambiente pré-existente (sem interferência criativa, no sentido de modificá-la quanto ao seu aspecto utilitário real); e qualquer objeto de cena deve servir também e principalmente para sua operação funcional cotidiana.

4- Toda a luz utilizada no processo de realização fílmica deve pertencer à composição do próprio ambiente, locação, ou cenário natural; e ainda, deve fazer parte da cena. Não sendo admitida qualquer interferência externa e/ou técnica sobressalente, nesse sentido.

5- A realização fílmica em si deve ser executada em forma de plano sequência; ou seja, sem que a câmera seja desligada durante o processo de composição da obra, e excluindo-se qualquer possibilidade de edição ou montagem imagética ou sonora. Ressalvado no caso de composição simultânea à realização fílmica.

5.1- O tempo fílmico – (aquele composto pelo enredo, através do conflito dramático) – portanto, deve ser igual ao tempo de execução técnica da obra. E, portanto, o enredo deve ser composto de forma a seguir o sistema de medida temporal tradicionalmente adotado. É censurado, qualquer tipo de corte ou elipse (neste último caso, ressalva-se a ocasião em que tal artifício é feito durante a execução técnica da obra).

6- A construção do personagem pelos atores-chave (ou atores-guia), deve caber majoritariamente a eles próprios, sendo permitida a criação de novas falas, contanto que estas caibam na composição da estética da obra áudio-visual proposta. É estimulada a improvisação crítica efetuada pelos atores, no intuito de contornar possíveis entraves, sejam eles de ordem técnica ou subjetiva. Censura-se no caso de um ator querer insensatamente expor suas convicções político-ideológicas, ou mesmo suas alterações de estados psicológicos da consciência, a não ser que faça parte da proposta prévia estética da obra.

6.1- Todo e qualquer papel coadjuvante ou de figuração deve ser executado pelos chamado “atores-naturais“, que são aqueles indivíduos da população sem um apuro técnico prévio para a elaboração e composição de personagens; de forma que eles passam a se representar, em seu próprio ambiente e cotidiano. Por isso prefere-se não avisá-los previamente que tal encenação é parte integrante da obra fílmica, de forma que suas ações e reações sejam o mais natural e espontâneas possível.

7- Cabe ao técnico-diretor apenas a indicação dos diálogos-guia e entonações desejadas, além de indicar a limitação das “margens” do espaço de filmagem, ou das localizações dos “espaços-fílmicos” a serem utilizados. Seu papel relevante está em espelhar conceitualmente a unidade da proposta estética a ser executada. Suas possibilidades são também a de sugerir modos ou mesmo alterações do enredo ou da concepção estética durante o processo de filmagem. No entanto, seu papel de técnico-diretor não deve transparecer dentro dos limites fílmicos; neste caso o técnico-diretor tem a permissão livre de conceber e construir, mesmo que imediatamente, a composição de um ator-chave e passar a fazer parte do enredo da obra. Neste caso, as indicações de pontos de improviso devem partir das falas do personagem concebido.

8- O técnico-câmera tem total liberdade de exploração, criativa e espontânea para sua elaboração imagética, podendo obviamente levar em consideração e por vezes seguir sugestões do técnico-diretor ou mesmo do ator-guia que tentará expô-las através das falas de seus personagens. A atenção do técnico-câmera deve ser dirigida, entretanto, de modo que não se evidencie de que se trata de uma elaboração artístico-técnica, a não ser que se trate do intuito da concepção estética fílmica.

8.1- Considera-se louvável quando a câmara compõe um personagem na composição do enredo juntamente com os demais atores (a chamada “câmera subjetiva“), sem, no entanto, deixar claro que se trata de uma obra de arte pré-elaborada, em especial de uma composição técnica áudio-visual.

9- A concepção estética a ser concebida previamente deverá, preferencialmente, na maior parte das vezes, optar por um realismo ficcional, de forma a retratar e sugerir soluções para as dificuldades enfrentadas pelas partes mais desfavorecidas e oprimidas da população. Torna-se importante, no entanto, que a própria população atue na elaboração da concepção estética fílmica, e do próprio enredo.

Texto publicado originalmente em:
http://www.filtrodeoleo.com.br (atualmente desativado)

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* Tiago Penna é candango, professor de filosofia, videasta, roteirista, produtor e mais outras coisas em audiovisual.