Pança farta e pé dormente

por Gregório de Matos*

Descreve com admirável propriedade os effeytos, que causou o vinho no banquete, que se deo na mesma e;esta entre as juizas, e mordomas onde se embebedaram.

1. No grande dia do Amparo,
estando as mulatas todas
entre festas, e entre bodas,
um caso sucedeu raro:
e foi, que não sendo avaro
o jantar de canjirões,
antes fervendo em cachões,
os brindes de mão em mão
depois de tanta razão
tiveram certas razões.

2. Macotinha a foliona
bailou robolando o cu
duas horas com Jelu
mulata também bailona:
senão quando outra putona
tomou posse do terreiro,
e porque ao seu pandeiro
não quis Macota sair,
outra saiu a renhir,
cujo nome é Domingueiro.

3. Por Macotinha tão rasa
de putinha, e mais putinha,
que a pobre Macotinha
se tornou de puta em brasa:
alborotando-se a casa
as mais se foram erguendo,
mas Jelu, ao que eu entendo,
é valente pertinaz,
lhe atirou logo um gilvaz
de unhas abaixo tremendo.

4. A mim com punhos violentos
(gritou a Puta matrona)
agora o vereis, Putona,
zás, e pôs-lhe os mandamentos:
e com tais atrevimentos
a Jelu se enfureceu,
que indo sobre ela lhe deu
punhadas tão repetidas,
que ficando ambas vencidas,
cada qual delas venceu.

5. Acudiu um Mulatete
bastardo da tal Domingas,
e respingas, não respingas
deu a Mulata um bofete:
ela, fervendo o muquete,
deu c’o Mulato de patas,
eis aqui vêm as Sapatas,
porque uma é sua madrinha,
e todas por certa linha
da mesma casa mulatas.

6. Chegou-se a tais menoscabos
que segundo agora ouvi,
havia de haver ali
uma de todos os diabos:
mas chegando quatro cabos
de putaria anciana,
a Puta mais veterana
disse então, que não cuidava,
que tais efeitos causava
vinhaça tão soberana.

7. Sossegada a gritaria
houve mulata repolho,
que, o que bebeu por um olho,
pelo outro o desbebia:
mas se chorava, ou se ria,
jamais ninguém comprendera,
se não se vira, e soubera
pelo vinho despendido,
que se tinha desbebido,
quanto vinho se bebera.

8. Tal cópia de jeribita
houve naquele folguedo,
que em nada se tem segredo,
antes tudo se vomita:
entre tantas Mariquita
a Juíza era de ver,
porque vendo ali verter
o vinho, que ela comprara,
de sorte se magoara,
que esteve para o beber.

9. Bertola devia estar
faminta, e desconjuntada,
pois vendo a pendência armada,
tratou de se caldear:
bebeu naquele jantar
sete pratos não pequenos
de caldo, e sete não menos
de carne, e é de reparar
que a pudera um só matar,
e escapar de dois setenos.

10. Maribonda, minha ingrata
tão pesada ali se viu,
que desmaiada caiu
sobre Luzia Sapata:
viu-se uma, e outra Mulata
em forma de Sodomia,
e como na casa havia
tal grita, e tal contusão
não se advertiu por então
o ferrão, que lhe metia.

11. Teresa a da cutilada
de sorte ali se portou,
que da bulha se apartou,
porque era puta sagrada:
da pendência retirada
esteve num canto posta,
mas com cara de Lagosta
trocava com muita graça
o vinho taça por taça,
a carne posta por posta.

12. Enfim, que as Pardas corridas
saíram com seus amantes,
sendo, que no dia d’antes
andavam elas saídas:
e sentindo-se afligidas
do já passado tinelo,
votaram com todo anelo
emenda à Virgem do Amparo,
que no seu dia preclaro
nunca mais bodas al cielo.

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*Gregório de Matos (1636 — 1696), alcunhado de Boca do Inferno ou Boca de Brasa, foi um poeta barroco brasileiro, na época colonial. Influenciado pela estética, estilo e sintaxe de Gôngora e Quevedo, é considerado o verdadeiro iniciador da literatura brasileira. Este texto foi extraído do livro Crônica do Viver Baiano Seiscentista: Pança farta e pé dormente.

Um comentário em “Pança farta e pé dormente

  1. O Gregório de Matos ele detona toda essa meia verdade mentirosa de que tudo no Brasil é mato e morte! huhsaus Aqui é ainda uma comédia! esse texto é muito engraçado para não ser tosco ou deprimente pelo fato dele mostrar um corriqueiro dia de puteiro rsrsrs, assim entendi EU! Mas o que me chmou a atenção foi esta passagem: “… viu-se uma, e outra Mulata
    em forma de Sodomia,
    e como na casa havia
    tal grita, e tal contusão
    não se advertiu por então
    o ferrão, que lhe metia.” Baralho será que entendi certo?? putaria sexual pré-moderna! advinda de dos submundos dos sexishops, casas de streepteases e outros locais de coitos alcolizados?? Então o Gregório de Matos foi uma espécie de Sônia Abrão das poesias?? Sem contar com suas denuncias sarcásticas?? Ave Gregório expulsa dos Matos esses Brasis Dantescos que a Classe média madou pro convento!! kkkkkk

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