Parada

por Adriano de Almeida*

Umas duas vezes por dia eu penso: escreve, volta a escrever. Então manda pra ela. A sua amiga. Aquela. De Brasília. Ela com certeza vai sacar a santa impaciência, opaca, obtusa, compulsiva. Talvez ela quisesse o mínimo, um mímico murmúrio, pedra pontuda pontuada de verdade. Um fotograma: a cidade, ela queria, com certeza. Ela sente saudade. Do frio – que não existe. Do tempo – que não há. De uma outra cidade. Poxa, ela pediu pra você: escreve, puxa, escreve. Escravo, digo, repito: ela não vai falar, não adianta – a cidade. Ela é contínua. Ela muda emudecida. Gravou seus movimentos numa câmara aberta. O cérebro da câmara foi jogado no rio. Era madrugada, o rio já não existe. Ele se foi já muito antes da Cruzada pelo Verde. Salvaram até os ET’s, ele se foi. Seu leito virulento é o retrato da cidade. A câmara escura. O futuro. Não vem. É sólido, oco, ordinário. As vozes soterradas de tapuias se empedraram no seu ventre. Mas ela quer, ela quer ouvir, e umas duas vezes por dia mais ou menos eu penso: hoje escrevo, mandando um aceno e dizendo por aqui é a mesma coisa de sempre, entramos inda nas cavernas besuntadas de suor e ostentamos como sempre aquele modo grave de viver. Todo dia com mais queda de energia e criatividade, todo dia com uma queda significativa de humor e mais morador de rua, todo dia um horizonte mais estreito protegido por porteiros nordestinos, pretos, pobres, sonambulando pra zelar o nosso sonho clandestino, leve, ágil, e despertando ainda antes que possamos afastar o sono, prosseguir viagem, com licença, quase entre dentes, estridentes, tiritantes, entrementes um juízo que se acanha à beira de outro abismo quando tudo é atravessado na garganta da avenida.

Os faróis já vão abrir / E um milhão de estrela prontas pra invadir.

Não há manhãs frias de abril, não há exílio entre os casarões, não há aquecimento nem ventilação. São Paulo morre sozinha, São Paulo incha, São Paulo sofre, São Paulo está parada há muitos anos e estará pra sempre. Ninguém sabe disso e é preciso avisar: São Paulo está parada há pelo menos vinte anos. Mas você quer, você diz, você quer se lembrar: dos tempos dos sobrados, das sacadas, das varandas da periferia, do silêncio & da neblina, você quer – rever aquelas fotos de onde o nosso rosto já se foi. O sonho acordado, desejaram os mitólogos; mas não, my baby:

é o pesadelo infinito, de onde não se sai depois que acaba o grito.

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* Adriano Guilherme de Almeida é paulistano, pai, escritor e professor de literatura.

Um comentário em “Parada

  1. tem dia que doi infinitamente a saudade da terra natal, do caos que me criou. mas a vontade de experimentar o mundo continua. ai…

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