por Friedrich Nietzsche*
VI
Um doloroso e trágico espetáculo surge diante de mim: retirei a cortina da corrupção do homem. Essa palavra, em minha boca, é isenta de pelo menos uma suspeita: a de que envolve uma acusação moral contra a humanidade. A entendo – e desejo enfatizar novamente – livre de qualquer valor moral: e isso é tão verdade que a corrupção de que falo é mais aparente para mim precisamente onde esteve, até agora, a maior parte da aspiração à “virtude” e à “divindade”. Como se presume, entendo essa corrupção no sentido de decadência: meu argumento é que todos os valores nos quais a humanidade apóia seus anseios mais sublimes são valores de decadência.
Denomino corrompido um animal, uma espécie, um indivíduo, quando perde seus instintos, quando escolhe, quando prefere o que lhe é nocivo. Uma história dos “sentimentos elevados”, dos “ideais da humanidade” – e é possível que tenha de escrevê-la – praticamente explicaria por que o homem é tão degenerado. A própria vida apresenta-se a mim como um instinto para o crescimento, para a sobrevivência, para a acumulação de forças, para o poder: sempre que falta a vontade de poder ocorre o desastre. Afirmo que todos os valores mais elevados da humanidade carecem dessa vontade – que os valores de decadência, de niilismo, agora prevalecem sob os mais sagrados nomes.
VII
Chama-se cristianismo a religião da compaixão. – A compaixão está em oposição a todas as paixões tônicas que aumentam a intensidade do sentimento vital: tem ação depressora. O homem perde poder quando se compadece. Através da perda de força causada pela compaixão o sofrimento acaba por multiplicar-se. O sofrimento torna-se contagioso através da compaixão; sob certas circunstancias pode levar a um total sacrifício da vida e da energia vital – uma perda totalmente desproporcional à magnitude da causa (– o caso da morte de Nazareno). Essa é uma primeira perspectiva; há, entretanto, outra mais importante. Medindo os efeitos da compaixão através da intensidade das reações que produz, sua periculosidade à vida mostra-se sob uma luz muito mais clara. A compaixão contraria inteiramente lei da evolução, que é a lei da seleção natural. Preserva tudo que está maduro para perecer; luta em prol dos desterrados e condenados da vida; e mantendo vivos malogrados de todos os tipos, dá à própria vida um aspecto sombrio e dúbio. A humanidade ousou denominar a compaixão uma virtude (– em todo sistema de moral superior ela aparece como uma fraqueza –); indo mais adiante, chamaram-na a virtude, a origem e fundamento de todas as outras virtudes – mas sempre mantenhamos em mente que esse era o ponto de vista de uma filosofia niilista, em cujo escudo há a inscrição negação da vida. Schopenhauer estava certo nisto: através a compaixão a vida é negada, e tornada digna de negação – a compaixão é uma técnica de niilismo. Permita-me repeti-lo: esse instinto depressor e contagioso opõe-se a todos os instintos que se empenham na preservação e aperfeiçoamento da vida: no papel de defensor dos miseráveis, é um agente primário na promoção da decadência – compaixão persuade à extinção… É claro, ninguém diz “extinção”: dizem “o outro mundo”, “Deus”, “a verdadeira vida”, Nirvana, salvação, bem-aventurança… Essa inocente retórica do reino da idiossincrasia moral-religiosa mostra-se muito menos inocente quando se percebe a tendência que oculta sob palavras sublimes: a tendência à destruição da vida. Schopenhauer era hostil à vida: esse foi o porquê de a compaixão, para ele, ser uma virtude… Aristóteles, como todos sabem, via na compaixão um estado mental mórbido e perigoso, cujo remédio era um purgativo ocasional: considerava a tragédia como sendo esse purgativo. O instinto vital deveria nos incitar a buscar meios de alfinetar quaisquer acúmulos patológicos e perigosos de compaixão, como os presentes no caso de Schopenhauer (e também, lamentavelmente, em toda a nossa décadence literária, de St. Petersburgo a Paris, de Tolstoi a Wagner), para que ele estoure e se dissipe… Nada é mais insalubre, em toda nossa insalubre modernidade, que a compaixão cristã. Sermos os médicos aqui, sermos impiedosos aqui, manejarmos a faca aqui – tudo isso é o nosso serviço, é o nosso tipo de humanidade, é isso que nos torna filósofos, nós, hiperbóreos!
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* Friedrich Wilhelm Nietzsche (Röcken, 15 de Outubro de 1844 — Weimar, 25 de Agosto de 1900) foi um influente filósofo alemão do século XIX. Trecho extraído do livro O Anticristo, de 1888.
Tenho medo desse raciocínio de Nietzsche. A palavra é esta mesmo: medo.
Bjão.
Adriano.