por Adriano de Almeida*
Bicoradas de pombos e corvos. Essa cidade é um pesadelo.
Seu Mário agitou-se a noite toda. Meteu-se com uma vara no viveiro dos bichos, em voz de cantilena os almadiçoou e os benzeu. Ouvi ele dizendo “Agradecido, meu filho, agradecido”.
Duas da tarde e ainda de pijama. A montanha de papel sobre a mesa, esperando meu trabalho. Por que fui arrumar coceira? Ser professor já não vai muito bem? Agora se meter em servicinho de editora… Servicinho que nem paga pelo anonimato: guias de estudos, suplementos, roteiros de leitura, coisinha escroque. Ninguém nem devia de ler isso. E eu aceitando essa groselha pra ganhar um tostão.
Por que não foi fazer publicidade? Você escreveria assim mesmo, nas suas horas vagas. E cada ideia valeria nota preta.
Um escritor sem livro publicado? Investe mais nesses trabalhos, as editoras têm alguém por lá que acaba sempre farejando um talento.
Talento. Escrita dura, pedra sobre pedra, escrita sobre a escrita. O pêndulo com os pombos, seu Mário e as casas tortas desta rua, pesadelos neogóticos. As sombras e as raízes das árvores imensas, os homens de colete (pesadelo) perguntando o que você andou fazendo nesses últimos dias.
Nem uma linha. Nulla die sine linea. Ah, ah.
As perguntas vão reaparecendo, entre a poeira dos dias, sempre. O que esses anos todos foram acumulando de entulho. Um pouco da Roosevelt. Um pouco do seu próprio corpo. Um pouco dos copos de outros onde já meteu seu beiço. Um pouco das coisas pelas quais você um dia lutou.
Nulla die sine linea.
Seu Mário existe na forma de um corvo. O corvo do poeta Poe. Aquele doido americano. Ou a coruja do amaldiçoado Paulo Honório.
E você, Professor, que se vire com seus pombos.
Podia levantar-se agora, espanar a papelada e digitar cinco ou seis laudas de um textinho irretocável. Por que não o faz? Vingança, preguiça, falta de ambição. E, ao contrário do que pensam (Seu Mário nunca saiba disso), você não escreve. E ao contrário do que pensam (“Um bacharel, vejam só”), você redige cartas.
Despojos dejetos desejos entulhos. Tudo o que o tempo devolve, espumando imundas ondas.
Olha o Pinheiro
Podre
Dentro de todo homem
há um rio virulento
(Antonio Cruz)
Os espaços apertados (quando era jovem adorava o termo “angusto”, mas a vergonha restringiu seu uso a situações metalinguísticas) são propícios à perturbação mental. Isso está escrito em Crime e castigo. Esse é o tamanho do seu mundo.
Uma noite andando pela rua, achou que era Raskólnikov. Um pesadelo que durou dois meses; levou-o, a certa altura, a adormecer em túmulos. O coro dos entulhos, dos despojos, dos desastres.
São Paulo.
Dormiu em bancos de praças, marquises, cinemas. E não porque não tinha casa. Chegou a andar três dias sem nenhum destino. Radial Leste. Cachoeirinha. M’Boi-Mirim. Qualquer nota. Qualquer preço. Qualquer troco.
Seu Mário me diz que ele é neurótico, e que está vendo sua mulher ser devorada aos poucos pelo câncer.
É a cidade toda, seu Mário, é todo o mundo.
Ele é um homem sincero e me diz isso segurando seus cabelos com fúria.
A pilha de papéis mede meus movimentos. Esse é um cronômetro.
Eu sou o entulho.
(São Paulo, janeiro de 2002)
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* Adriano de Almeida é paulistano, pai, escritor e professor de literatura.