Não entrei para as estatísticas

por Roberta AR 

Nasceu. A coisa mais improvável de acontecer comigo, aconteceu: meu filho chegou.

Do pânico de descobrir uma gravidez não planejada aos cinco meses de gestação, o medo por estar para completar 40 anos, o medo de doenças, de não dar conta, da minha vida acabar, como tanta gente me disse, nada disso chegou perto do pavor de sofrer violência obstétrica no parto.

Vamos começar do começo. Um belo dia a menstruação atrasa e vou no médico achando que era estresse ou algo assim, porque estava com cólica, algo que quase nunca tenho. A notícia: grávida e de não pouco tempo. Ao fazer os exames constatamos que já eram 19 ou 20 semanas de gestação.

Mas como é possível não saber? É possível. Todos os dias encontro alguém com uma história parecida. Uma amiga ficou sabendo por minha causa que ela foi descoberta aos cinco meses (e nasceu dois meses depois!). Hoje mesmo a menina da padaria me contou que descobriu a primeira filha com sete meses de gestação. Minha chefe também. Então é isso, acontece. E quando acontece assim, você não pode nem pensar em interromper (sim, gente, sem moralismos, porque o desespero faz a gente pensar em tudo), é encarar e seguir em frente.

Mas você não estava se prevenindo? Aqui, quem explica é o ginecologista e obstetra Jefferson Drezett, numa entrevista sobre aborto para a Agência Pública: “Mas mesmo que a gente oferecesse metodos contraceptivos para todas as mulheres sexualmente ativas no mundo, segundo a OMS, se todas usassem direitinho, mesmo assim nós teriamos entre oito e 10 milhões de gestações por falhas dos próprios métodos. Uma coisa que precisa ser entendida é que as mulheres não engravidam porque não são responsáveis ou simplesmente não usam métodos contraceptivos. Dizer isso é pura ignorância”.

Depois da descoberta, uma crise de pânico com hiperventilação e a sensação de pequenez com o mundo todo parecendo desabar sobre a cabeça. “Meus planos”, eu pensei. Mas logo descobri que não tinha plano nenhum que a notícia tivesse estragado irremediavelmente. “Se vivêssemos como indígenas, em comunidades como as guarani, por exemplo, isso não seria um problema de maneira nenhuma na minha vida. A gente só fica assim porque vive numa sociedade em que mulheres são abandonadas e violentadas cotidianamente e em que crianças são maravilhosas antes de nascer e tratadas como problema logo depois que chegam ao mundo”, cheguei a falar com alguém.

Daí tudo o que seria problema foi se resolvendo: uma amiga ajudou na compra do enxoval, outro deu a banheira, outra, o carrinho, brinquedos, mais roupas, berços, a licença no trabalho, tudo foi se resolvendo. Mesmo o que seria o maior problema, já que não tenho plano de saúde.

Fui no posto de saúde perto de casa e minha incrível surpresa foi ver que existe uma rede de atendimento à gestante e aos bebês no serviço público de qualidade excelente. Mas isso foi uma sorte minha, pois moro num bairro central e com baixa densidade demográfica, perto de um posto de saúde modelo (para ter ideia a mulher do atual governador foi obstetra lá) e em frente ao hospital maternidade de referência.

Digo sorte, porque foi exatamente isso o que aconteceu. A minha primeira consulta aconteceu num hospital privado. Uma consulta de 300 reais (com desconto), em que eu esperei um tempão e, quando fui atendida, ainda tive que ouvir uma manifestação de pacientes indignados com a demora no atendimento. A médica que me atendeu, com até alguma boa vontade, me deu a notícia de um jeito infantilizado, falando de “presentinho” enquanto eu entrava em pânico.

Neste mesmo hospital, um colega do trabalho teve seu segundo filho. Ele chegou com a esposa em trabalho de parto e ficaram no corredor, ela numa maca, esperando alguém chegar para fazer atendimento. Nenhum obstetra na emergência e o filho nasceu na mão dos dois, sem nenhuma ajuda de algum profissional do hospital, apenas uma enfermeira que chegou depois de tudo feito (a sorte é que ele tinha feito um curso de doula, ou algo assim) e cortou o cordão. Mas a conta do centro obstétrico chegou e a coisa toda foi parar na justiça.

Minha irmã foi atrás de hospital que fizesse parto humanizado. Acho bizarro esse título, pois somos humanos e todo parto deveria ser de humanos para humanos. Bem, pagou pelo atendimento, mas sofreu violência, neste que seria o único hospital com parto humanizado de São Paulo. A filha demorou seis horas até ver a mãe.

Uma amiga estava em trabalho de parto e, como a dilatação estava demorando um pouco, o médico fez um toque com uma torção para “ajudar” a dilatar mais rápido, o que foi extremamente dolorido.

Uma amiga do meu companheiro foi atendida no mesmo hospital que eu seria, um hospital maternidade público, que tenta aplicar todas as recomendações de parto da Organização Mundial de Saúde. Adolescente, no meio do trabalho de parto, o médico faz uso do fórceps, por algum motivo, e ela acaba com deslocamento do útero e mais alguns problemas, além de ter ouvido alguns impropérios.

A minha doula acompanhou um parto em outro hospital público e viu uma parturiente que estava em 48 horas de trabalho de parto ser deixada num corredor, com o feto já em sofrimento e sem ser examinado, porque ela tinha decidido ir para uma casa de parto primeiro.

Uma outra amiga pagou um obstetra famoso recomendado “por muita gente” e especialista em parto normal. Ela pagou algo em torno de cinco mil reais, há dez anos, só para ele acompanhar o parto, que seria lindo. Na hora em que ela começou o trabalho de parto, ele a apavorou, dizendo que aquelas dores não eram normais e a filha estava em sofrimento. Tudo foi resolvido em duas ou três horas. No dia seguinte, ela viu que tinha sido enganada e entrou em depressão pós parto.

Fora as histórias de obstetras “incríveis”, que atendem “todo mundo” por muitos reais, mas não ouvem nenhum questionamento e só dizem o básico em consultas que duram poucos minutos e pelas quais se espera horas numa sala abarrotada. Essas pessoas acabam recorrendo às famigeradas revistas para mães, que são o paraíso da desinformação e da venda de produtos desnecessários.

Uma em cada quatro mulheres, pelo menos, é vítima de violência obstétrica no país. Esse é o dado palpável, mas provavelmente seja bem maior que isso, pois muita gente nem se dá conta de que o que sofreu foi violência. Uma outra reportagem da Agência Pública trata do assunto. O título sugestivo “Na hora de fazer não gritou” dá o tom de um relato pessoal, mas que é a história de inúmeras mulheres.

Todo o resto que passei, a correria para ver se não tinha nada errado com o bebê, comigo, para arrumar tudo, o medo de não dar conta, isso não foi nada perto do pavor que eu estava da hora do parto. De ser mal tratada como todo mundo tinha mil histórias para contar. Meu companheiro falou que ia se algemar a mim para ter certeza de que tudo ia ficar bem. Não foi necessário pois tive a sorte de ser a minha médica a me atender na sala de parto.

Eu tive sorte. Fui atendida por um equipe espetacular num postinho comunitário e público. Me ouviram e consolaram meu choro na hora que cheguei em pânico. Me examinaram, cuidaram de mim e do meu bebê. Foi muita sorte ser agendada com a médica que respondia a todas as minhas perguntas e que me deixava segura depois de dizer que era só bobagem os medos todos que tanta gente tinha o prazer de me enfiar na cabeça. E ter conseguido ser acompanhada no finalzinho por uma doula que me ajudou tanto na transição.

Foi sorte ser acompanhada por uma médica que não queria marcar dia e hora para meu parto, que no fim não foi normal porque não teve como ser, pois não entrei em trabalho de parto e o bebê entrou em sofrimento, com taquicardia. Fomos prontamente encaminhados para a cirurgia, que aconteceu num clima ótimo, a equipe tratando o bebê pelo nome e me falando cada coisa que estava acontecendo comigo e com ele, nos acalmando e deixando o clima o mais leve possível. Fiquei com o bebê durante todo o processo, na sala de recuperação e etc, coisa que descobri ser bem rara. Meu companheiro ficou na sala de internação todo o tempo conosco e fui orientada sobre amamentação, alimentação e todos os cuidados que precisava saber durante os dois dias em que fiquei no hospital. Sorte de sermos pessoas e sermos tratados com humanidade por profissionais de saúde. O que deveria ser o mínimo aceitável, foi um privilégio que, ainda bem, fui capaz de usufruir.