A loucura dos invisíveis – A periferia e os seus Coringas

por Juh Oliveira*

Se basta um dia ruim para reduzir o mais são dos homens a um lunático, qual o nível de insanidade de quem passa uma vida tendo dias repletos de injustiças sociais e lutas pessoais?

O filme Coringa (Joker) tem dividido opiniões e sido tema de discussões sociais importantes. Uma delas é se a narrativa apresenta a violência como solução e incentiva outros a fazerem igual, por serem vítimas da sociedade. É uma obra prima da sétima arte ou um filme perturbador, mas com o objetivo de nos fazer refletir? Quando eu ri naquela cena foi um “rindo de nervoso” ou “estou perdendo a minha moral e ética quando acho graça diante daquilo”? E acho que uma questão de destaque aqui pode ser: qual a grande piada do filme?

imagem de divulgação do filme Coringa

Diante de todos esses apontamentos, alguns reverberam diretamente nas nossas periferias, onde a figura do palhaço louco é um ícone presente em camisas de time, tatuagens, desenhos infantis e grafittis nos muros. Até temas de letras de funk ele inspira, com referências aos quadrinhos ou relações com as situações rotineiras que fazem da favela e de quem mora nela participantes de um cenário digno de Gotham City.

Inclusive, importante lembrar que, no Brasil, é comum a tatuagem de palhaço ser a marca de quem já matou policiais. Esta imagem que muitos manos e minas têm (ou deixam de ter no corpo justamente por ser associado à violência) podem criar situações constrangedoras, como ser enquadrado pela polícia e maltratado pelos que estão ali para “servir e proteger”.

Outra questão importante é da invisibilidade. No filme, o personagem tem acesso a diversos lugares que se não fosse alguém “invisível” não conseguiria adentrar, e ele burla o sistema exatamente nisso. Ele consegue uniformes, entra pelos fundos em áreas de serviços, usa a maquiagem e, em algumas cenas, a máscara para se misturar à multidão. E isso fala diretamente ao povo das periferias: que precisa estar uniformizado, utilizando entradas diferentes das pessoas “visíveis”, mais um no mar de gente nos transportes públicos, agindo em legítima defesa e sendo visto somente quando há um destaque à violência e os exageros dela. Enquanto o Estado os mantém invisíveis com o sistema e reduz serviços que seriam para uso dessas pessoas, a cada dia a quebrada sangra e sofre com injustiças e desigualdades.

A incitação do ódio aos ricos e a troca de papeis no filme é algo a destacar aqui. Os Wayne deixam de ser o centro da narrativa de sofrimento e morte trágica para tomarem o papel de “burguês safado”, a família rica e branca cheia de privilégios que zomba do povo inclusive diante da mídia e que desfruta de tudo o que a cidade pode oferecer e oferece poucas migalhas de assistência social (duvidosa) à Gotham. Algumas cenas do filme que retratavam esse descaso me trouxe a lembrança do cartaz produzido pelo Movimento Ética na Política, em 1992, e exibido durante as manifestações pró impeachment do presidente Fernando Collor de Mello que diziam “Não somos palhaços”, junto à figura de um rosto enorme de palhaço sorridente.

O racismo não é o foco no filme, mas um tópico a ser abordado em mais discussões é o de que os negros e pessoas não-brancas no filme estão a serviço dos brancos (contextualizando o período dos anos 70/80 que o filme é ambientado) e a desigualdade social se mostra em diversas cenas. Daquelas que apontam os diversos privilégios de uns poucos em contraste ao sofrimento de tantos, até chegar ao grande momento do filme quando uma multidão de “coringas” se rebela e a cidade fica literalmente em chamas. Chega a ser prazeroso olhar o sistema se destruindo, mesmo que com a sensação de peso na consciência de pensar que aquilo pode não ser o certo. Mas a violência diária do Estado ao povo periférico é certa? É justa?

imagem de divulgação do filme Coringa

O convite e participação de Arthur Fleck (se apresentando como Coringa já) num programa de auditório, o grande sonho realizado para o antes palhaço e comediante não era, então,  o objetivo principal. Mas já sabemos que as participações das pessoas com poucas oportunidades de vida nas mídias nunca são inocentes, pois o interesse da audiência é justamente a exposição do sofrimento. Dito isso, fica o questionamento ecoando em nossa mente: a mídia é quem alerta sobre a violência ou quem incentiva a loucura desses invisíveis?

Para ser visto e aplaudido, ter destaque em rede nacional e ter o reconhecimento como vilão, Coringa dá o troco do que a sociedade fez e faz com ele. O “sistema Gotham” se auto-alimenta com a violência simbólica (utilizando o conceito de Pierre Bourdieu) que os Wayne fazem durante o dia com a população e a figura do vigilante que defende essas mesmas pessoas dos perigos da cidade violenta à noite. É de enlouquecer qualquer um não é mesmo? E se formos pensar que podemos estar inseridos num sistema como esse?

Que a quebrada, tão pulsante e tão cheia de alegrias, continue resistindo e criando formas de pensar e criticar que não recorram somente à violência armada – mesmo diante de manchetes diárias de mortes de inocentes pelo país e pelo mundo, que ainda haja esperança na cultura, na educação e no esporte. Nossos pequenos precisam de boas referências, apesar das influências que estão mais próximas da vivência deles: ser uma professora que inspira adolescentes e jovens a um futuro melhor me traz alegria, mas diante do descaso com tantos fatores que permeiam a rotina escolar fica cada dia mais complicado que hajam outros docentes com a mesma esperança.

Pensando na frase “não tenho nada a perder”, é que eu vejo a periferia. Da ponte pra cá o bagulho é doido mano! Cada morador dos becos e vielas possui tão pouco que o seu medo não é o de que levem o seu carro, celular ou notebook, mas sim a sua dignidade quando ele só é retratado na mídia e para a sociedade geral como um suspeito, um possível infrator da lei. Não temos nada a perder mesmo, e isso não justifica a violência, que fique bem pontuado aqui. Mas pensar que a grande piada da vida real é a periferia sendo destaque só para sofrimento quando há tanto pra celebrar dos nossos nos faz pensar no seguinte:

A GRANDE PIADA DE CORINGA É A MORTE DOS WAYNE E A FALÊNCIA DO SISTEMA?

#QuebradaFortaleceQuebrada

Indico aqui um vídeo que complementa a análise, feito por um mano também da periferia que curte e fala sobre a cultura pop:

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*Juliana de Oliveira (@ilujauosueé formada em História pela UNISA e em Ciências Sociais pela UNIMES, e cursos de extensão em Ciências Humanas pelo IICS e de Quadrinhos em Sala de Aula pela Fundação Demócrito Rocha. Atua como professora há 10 anos, trabalhando na rede municipal de São Paulo. É produtora de conteúdo de cultura pop, geek e nerd para sites do nicho e também apresenta o programa Live Pop Geeks na Rádio Geek às terças-feiras 20h.