A Marsha a caminho

por Roberta AR

Em frente ao Congresso Nacional, em Brasília, esse lugar em que corpos poderosos tomam as decisões que regram nossas existências, mais uma cena histórica se desenha e se fortalece. Aconteceu, no dia 26 de janeiro de 2025, a segunda edição da Marsha Trans.

Corpos fora da norma, que não se submetem ao sistema binário preestabelecido, dissidentes, se reuniram vindos de todas partes do Brasil. Organizações não governamentais, lideranças nacionais, regionais, vereadores, deputades estaduais e federais estiveram presentes e falaram sobre a importância de manifestações públicas como essa. Sim, marchas, passeatas, ainda são importantes. E a Marsha Trans se mostra um espaço extremamente politizado, de pessoas que estão na luta em seus territórios cuidando de quem sofre violência e descaso cotidianamente. Esse não é lugar de lamentos, mas de esperança e beleza, sorriso no rosto, abraço, purpurina e manifestos.

No carro de som, as bandeiras da luta

Vejo figuras conhecidas, barracas de ONGs que lutam por diversas parcelas dessa população, pessoas que cuidam de casas de atendimento e acolhimento à população LGBTQIA+, que funcionam a partir da mobilização coletiva, até conseguirem algum apoio de políticas públicas. Nada nunca foi de graça para nenhum de nós.

É uma festa, também. Mas quem resume esse estar na rua a um “carnaval” não está entendendo nada, nem entende que o carnaval também é uma festa do povo e símbolo da resistência das culturas oprimidas neste país inventado. Quem nos oprime não admite a alegria de querer estar vives que nos move e ela, a alegria, é o que querem matar primeiro. Festejar é resistir à pulsão de morte. Todo o resto é moralismo e violência.

Estive, também, na primeira edição da Marsha, em janeiro de 2024, e, nela, percebi a tensão da possibilidade da violência nos assombrando. Do carro de som ouvíamos sempre alertas sobre nos comportarmos comedidamente, porque “eles” estavam esperando qualquer deslize nosso para acabar com o evento. Todos prontos para a possibilidade da luta física, mesmo. Poucas crianças, poucas cangas pelo chão, todos prontos a sair. Um resumo do cotidiano desses corpos (e repito corpos, porque somos carne, sim). 

Agora, o movimento começa a se consolidar. Um pouco mais de cobertura da mídia convencional, muito mais gente, uma tenda da ONU com o Ministério da Saúde, com pufes e água. Muitas crianças, que foram lembradas por todos os que falaram (crianças trans existem!). Muito mais gente. Desta vez, meu filho foi também, ele precisa ver essa história sendo escrita com os próprios olhos.

Ao final de muitos discurso lúcidos, com uma leitura profunda da nossa realidade, ela, Erika Hilton, a nossa deputada federal que tem o dom da oratória, fruto da vida na rua, da luta coletiva, que não é um fenômeno isolado, como bem ressaltou a presidenta da Antra, Bruna Benevides, trouxe um resumo preciso desse nosso tempo e concluiu a sessão de falas que renovaram nossa esperança na luta (é para isso que servem esses encontros). Erika Hilton concluiu: “o futuro é preto, é travesti, é homem trans, é não binárie, é sapatão, é bicha, é puta, é viado. Este é o verdadeiro Brasil do Brasil.”

Veja o discurso completo no vídeo abaixo:

.

Vou me permitir um desabafo, aqui. Ano passado, eu peguei um voo com a Erika Hilton, indo para São Paulo. Fiquei empolgada com sua presença, mas não cheguei a falar com ela, que parecia muito cansada. Ao conversar com um conhecido sobre isso, lembrei da Marsha Trans, a primeira, em que ela fez outro discurso maravilhosamente potente, também num carro de som em frente ao Congresso Nacional. Ela vestia um shorts dourado e um óculos gigante, linda. Eu falava com esse conhecido sobre essa presença marcante, que não passava despercebida nem por seu conteúdo profundo de quem conhece a luta popular, nem por sua beleza, que impacta profundamente aquele ambiente formalmente sisudo e arcaico da Câmara dos Deputados. O novo se fazendo presente com intensidade. E disse o quanto isso é importante. O cara fez uma careta e uma fala grosseira sugerindo que aquilo não tinha tanta importância assim. Uns meses depois me deparo com essa mesma pessoa praticamente reproduzindo palavra por palavra isso que eu disse num podcast, o que foi destacado num corte no instagram. Nenhuma referência a essa nossa conversa, em que ele me diminuiu por dar tanta importância ao assunto, créditos é que eu não ia levar mesmo. Por que falo desse meu rancorzinho? Porque é sobre ser homem cis e entender que tudo o que chega a si te pertence, esse lugar que independente se o sujeito se diz de “esquerda”. Eu nem sou homem para fazer uma análise política de qualquer tipo.

Algum tempo depois, fui num evento da comunidade LGBTQIA+ na Câmara Legislativa do Distrito Federal, e a deputada Erika Kokay falava exatamente sobre o impacto dessas presenças marcantes nos espaços de poder: “Estética da Resistência”, ela nomeou. E eu me senti contemplada e satisfeita de conseguir me conectar com o tempo em que vivo e tratar como relevante aquilo que realmente é (e dar créditos a quem divide comigo esses pensamentos). Fim dos parênteses.

.

A caminhada pela esplanada foi bonita, é realmente importante marchar, nos alimenta de movimento. E o banner no carro de som trazia, como a primeira pauta do ano, o fim da escala 6 x 1. É uma luta interseccional e qualificada. Ainda teve show no centro, com Linn da Quebrada e outras atrações de peso. A beleza toda que o momento merece. Seguimos MarShando (uma referência a Marsha P. Johnson, ativista e uma das importantes personalidades na rebelião de Stonewall, um marco da luta LGBTQIA+).