por Roberta AR
A puta é uma vadia, sim, mas é também uma vagabunda e uma jovem delinquente: ela é uma bixa, uma mona uma sapatã dyke raivosa, uma anarquista insurrecionária de salto, uma trans tirânica. Ela é tudo e nada, toda gente e ninguém. Glamourosa em seus muitos disfarces e transparente em seu desejos imundos. Ela transborda de amor por quem está derramando ódio, pra sempre encantada com a beleza escondida sob esta estéril economia dos corpos. Pra ela, não tem nada melhor do que cuspir na cara da humanidade, rindo enquanto sua baba fedida escorre por queixos pontudos até respingar bonita na calçada suja sob seus pés.
Mary Nardini Gang & Gang of Criminal Queers
em
Bash Back: ultraviolência queer
Existe o normal, o padrão, o desejável, o aceitável. E existimos nós, aqueles que nunca farão parte, mesmo que alguns tenham passabilidade, mesmo que consigam circular nos ambientes em que esses outros transitam livremente. Nunca seremos eles.
Mas queremos ser eles? A nossa existência é a negação do certo que eles inventaram, não há como fugir disso. Nem há como sermos “aceitos”, somos nós que devemos perdoar, caso eles se arrependam de tentar nos colocar no lugar que inventaram para nós, mas só se quisermos, porque a violência que usam contra os nossos corpos não é pouca.
“Você precisa deixar de ser assim”, meu pai me disse na última vez que se dirigiu a mim, quando me ameaçou, me agrediu, tentou me jogar na rua, mas eu já tinha acionado a justiça. Ninguém daquela casa teve qualquer reação para me proteger ou sequer perguntou como eu estava. Adoeci, claro. Eu não entendi o que ele quis dizer naquele momento, só mais de vinte anos depois, quando me reconheci pessoa queer desde que nasci.
E foi só agora, na meia idade, que entendi porque nunca consegui fazer parte de uns tantos clubinhos sociais, já que sou essa esquisita de nascença, não que fosse alheia a estranheza de mim mesma, mas entender a complexidade disso e ver que é esse não fazer parte mesmo o que me afeta.
Ler Bash Back: ultraviolência queer devagarinho tem me conectado com a verdadeira beleza de quem é de verdade, de entender que é possível não se afundar na roda do capitalismo com a mente firme de quem se reconhece no espelho. E é lindo demais, veja isso: “Pra quem é bonite, coragem não significa sem medo, mas medo sem a possibilidade de estagnação e paralisia induzidas por possíveis consequências da revolta”.
A existência pesa muito nas costas de quem não se encaixa nos padrões. E somos muitos de nós que estamos fora. Lutar por sobreviver envolve procurar medidas paliativas no estado. Mesmo qualquer pequeno avanço público é importante, muitas vidas dependem disso. Mas precisamos lembrar que sem uma mudança estrutural, não acabaremos com a violência que nos atinge cotidianamente. Sinto muito, não se muda o sistema “por dentro”.
Ficou parecendo que temos uma vida horrível, né? Não se iluda, não somos vítimas, tentam nos sufocar com o peso da normalidade de uma sociedade doente e somos nós que gozamos melhor, que rimos de verdade, que entendemos o amor…
“Pra resumir, este mundo nunca nos foi suficiente. Pra ele dizemos ‘queremos tudo, escroto’
IMORAL É NOSSA POLÍTICA!
IMUNDA É NOSSA VIDA!”
Leia você também Bash Back: ultraviolência queer (está com download gratuito na editora)