por Laluña Machado*
Quem vê o Homem Morcego flutuando no imaginário cultural talvez não conheça todas as influências de contexto histórico que o personagem sofreu nesses últimos 80 anos, principalmente no que compôs a sua origem no fim dos anos 30.
O Bat-man (isso mesmo, havia um hífen) teve sua primeira história publicada na Detective Comics #27 em maio de 1939 pela editora National Publications, atualmente DC Comics. O mais novo super-herói dos quadrinhos foi criado por Bill Finger e Bob Kane, após um pedido do até então editor Vin Sullivan, em resposta ao sucesso que o Superman vinha fazendo. A primeira história do Cruzado Encapuzado foi intitulada de The Case of the Chemical Syndicate que seguia os parâmetros narrativos da época, como as revistas pulps. Contudo, para que o Batman pudesse ser um detetive, pudesse combater a máfia e ser um bilionário, fatos históricos ao longo de alguns anos cultivaram o caminho para que os criadores (principalmente Finger) pudessem ter tais resultados.
No início do século XX os EUA foram afetados por várias tensões sociais, intelectuais e econômicas. O país viu a Europa mergulhar na Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa acontecer, a URSS se formar e começou a enfrentar sérios desafios do capitalismo monopolista. Além disso, aspectos culturais também ganhavam novas concordâncias com o surgimento do jazz e do blues, o american way of life se fortalecia de acordo com o consumo de carros, rádios, geladeiras, além de meios de diversão como grandes teatros e cinemas luxuosos, artigos de “extrema necessidade” nas primeiras décadas da Era do Capital1. O proletário também começava a consumir mais bens culturais e grandes galpões ao lado das indústrias exibiam películas. Filmes como The Bat (1926) e O Homem que ri (1928), que influenciaram aspectos que formam o universo ficcional do Batman, ficaram acerca de produções como A Corrida do Ouro de Chaplin e O Fantasma da Ópera. Entretanto, os excessos teriam consequências graves com o a queda da Bolsa de Nova York em 1929, mas não tanto para o cinema, os quadrinhos e outras expressões culturais.
A Crise de 29 e os anos de Grande Depressão que se seguiram na década de 1930 lançou um cataclismo econômico em grande parte do mundo, afetando drasticamente pequenas e grandes potências, principalmente os países que saíram derrotados da Primeira Guerra Mundial. Franklin Roosevelt foi eleito presidente em 1933 e já chegou ao poder com uma missão de super-herói: salvar o país de um ataque cardíaco fulminante. Em seus primeiros anos de mandato foram colocados em prática planos de ações econômicas que visavam a fortalecer o setor industrial e agrícola, a regulamentar o sistema financeiro, a consolidar programas de assistência social e a realização de obras públicas para auxiliar a população carente que passava dias nas filas de doação de alimentos. Assim nascia o New Deal. Somente grandes empresários que conseguiram investir em demais possibilidades comerciais como Henry Ford, que começou a financiar alguns filmes, conseguiram passar pela crise sem ir à completa falência (Bruce Wayne ainda é um milionário mesmo após a Crise). Com isso, o cinema passou a ser visto como um veículo com extremo potencial lucrativo e começou a ganhar falas (isso pode ser visto no filme O Artista de 2011, vencedor de 5 Oscars), as películas deste contexto também começaram a retratar o drama que era se viver em uma crise de larga escala.
Nos quadrinhos os heróis de aventura também ganhavam força, personagens como o Príncipe Valente, Tarzan, Flash Gordon e o Fantasma alcançaram respeito entre os leitores de arte sequencial (o que não tinha esse glamour todo que vemos hoje). No rádio, personagens como o Besouro Verde e Cavaleiro Solitário cativavam os ouvintes (aqueles que ainda tinham rádio em casa). Outra figura que marcou muito a década foi O Sombra, o herói teve sua estreia no programa Detective Story Hour e posteriormente forneceu características para a criação do Homem Morcego.
O presidente Roosevelt também colocou por terra a Lei Seca que imperava desde 1920, a lei consistia que qualquer tipo de fabricação, transporte e vendas de bebidas alcoólicas fossem completamente proibidos em território nacional. Nesse período, grandes esquemas para a comercialização ilegal desses produtos foram desenvolvidos, personalidades como Al Capone serviram de qualificação para retratar a ascensão da máfia (quem é um dos maiores e primeiros inimigos do Batman?!). Mesmo com o governo fazendo uma espécie de “vista grossa” para o comércio clandestino de bebidas, o FBI que foi criado em 1908 agora também acumulava mais uma função, investigar e levantar provas contra as máfias que se estabeleciam (o Batman é antes de tudo um detetive).
Já nos últimos anos da década de 1930, os EUA davam sinais de que os anos de Grande Depressão já poderiam amenizar um pouco em relação às condições sociais e econômicas. Mas na Europa e no Pacífico a Segunda Guerra Mundial era iminente, o governo nazista ganhava mais seguidores, mais territórios e iniciavam-se as primeiras invasões. Os estadunidenses viram uma oportunidade de mais uma ascensão econômica com os conflitos e dá inicio ao comércio de bens de guerra para os países que faziam parte dos Aliados. Além disso, o país começou a praticar a “Política de Boa Vizinhança”, que basicamente era composta em exportar o american way of life para outros países da América, assim os comics e demais produtos e/ou estilos começaram a ser mais consumidos em territórios latinos. Isso foi de extrema importância para os quadrinhos de modo geral nesse contexto, levou a maior expansão de leitores e reconhecimento de personagens, o cenário estava sendo sedimentado para uma disseminação de um imaginário cultural em torno de alguns personagens (o Batman é um deles).
Em 1938 as crianças começavam a se encantar com algo que a primeira vista não se sabia se era um pássaro, um avião… mas era o primeiro super-herói dos quadrinhos, o Superman. O super-herói de collant azul e cueca por cima do mesmo, pegava impulso para os seus grandes saltos (isso mesmo, ele não voava ainda) na Action Comics #1. Não havia momento mais pertinente para o surgimento de um personagem com as características que o Homem de Aço tem. As crianças nascidas em meio a Grande Depressão (Steve Rogers é uma delas), ao mesmo tempo que sofreram com as consequências socais e econômicas com o crack da bolsa, também foram consumidoras das tirinhas de jornais, das matinês com filmes da Disney e cinesseriados de aventura, pulps e comicbooks. Entretanto, era uma geração mais cética, que não teve grandes perspectivas e mergulhada numa realidade mais dura. Só que um alienígena que levanta um carro poderia trazer esperança para a mente dessas pessoas.
Clark Kent nesse momento é a representação do homem que fracassou, que se reconhece como limitado, que de algum modo tem o ar bestializado, que é um cidadão como qualquer outro que tenta passar pelas demandas sociais do contexto que estar inserido. Mas quando rasga seu terno e o símbolo kryptoniano torna-se visível, esse mesmo homem pode ser considerado um deus. Superman abriu as portas para a Era de Ouro dos quadrinhos do gênero de super-heróis e foi um completo sucesso em vendas. Além do mais, se não fosse o alienígena/americano/patriota, o Batman não teria terreno para a sua composição e publicação em 1939.
Hoje vemos adaptações do Cruzado Encapuzado em todos os lugares e todos os tipos de mídias, sem contar com a quantidade de produtos que levam a elipse amarela com um morcego no meio. Mas realmente não nos damos conta da composição além do óbvio em relação a sua origem. Esse personagem tão emblemático e coberto de contradições psicológicas e sociais foi ganhando cores muito antes de Bill Finger pensar na sua primeira história e Bob Kane nos seus primeiros traços.
1 Referência ao livro A Era do Capital do historiador Eric Hobsbawn
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*Laluña Machado é graduada em História pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB, foi uma das fundadoras do Grupo de Estudos e Pesquisas “HQuê?” – UESB no qual também foi coordenadora entre os anos de 2014 e 2018. Do mesmo modo, exerceu a função de colaboradora no Lehc (Laboratório de Estudos em História Cultural – UESB) e Labtece (Laboratório Transdisciplinar de Estudos em Complexidade – UESB). Atualmente é membro do Observatório de Histórias em Quadrinhos da ECA/USP, colaboradora na Gibiteca de Santos e do site Minas Nerds.Sua pesquisa acadêmica tem como foco a primeira produção do Batman para o cinema na cinessérie de 1943, considerando as representações da Segunda Guerra Mundial no discurso e na caracterização simbólica do Homem Morcego. Paralelamente, também pesquisa tudo que possa determinar a formação do personagem em diversas mídias, assim como, sua história e a importância do mesmo para os adventos da cultura nerd. Contato: lalunagusmao@hotmail.com