Damien Song (parte II)

por Fernando “Rá” Vasconcelos*

Uma vez corri pra uma festa numa cidadezinha da redondeza,quando vou saindo da cidade já aliviada por não ter visto ninguém conhecido, quem está dando a mão para mim, num destes postos de beira de estrada? Ele mesmo. O que fiz? Fiz que não vi. Resultado nem cheguei a atingir a estrada secundária que levaria a meu destino, andei cerca de uns três quilômetros e meio, quando ouvi um primeiro estrondo: POW! Pensei, eita mulesta, e agora? Tou sem estepe!…

Quando vou olhar, tem um estepe, “minha santa” tinha resolvido mais isso pra mim. Pensei rápido, elétrico que tava, coração na güela, era noite mais o calor do sertão queimou todinho em mim naquele dia. Nunca troquei um pneu tão rápido na minha vida e de meu Deus, pôxa cerca de cinco minutos e tava pronto, olhei o relógio: 23h50. Fiz meia volta e retornei sentido de casa. Quando estou atingindo as imediações de uma destas fábricas artesanais de cerâmica, relaxei porque dali sabia que só faltavam cerca de dois quilômetros de casa, mas de repente, escuto outro estrondo, novamente: POW! Desta vez, eu enlouqueci, gritei pra dentro: – Damien, filho de um pai corno! Damien, filho de uma mãe puta! Damien… Seu condenado, isso é praga tua mizéra! Parei, desci do carro, olhei e vi outro pneu estourado. Fiquei transtornado, com aquilo, a coisa tomando conta de mim mesmo. Parei, tirei um cigarro do bolso e quando vou acendendo o cigarro, a claridade do fogo do isqueiro na estrada iluminou o caminho, pelo menos o meu campo de visão e entrei em pânico geral, quando vi uma silhueta humana apontando lá no horizonte do meu olhar. Liguei o carro e saí queimando de fogo a estrada até chegar na entrada da fábrica. Parei na entrada o vigilante veio, me identifiquei, ele disse que já tinha ouvido falar em mim, que era um prazer me conhecer e que eu desse as ordens. Disse pra mim mesmo: Êita porra! Fiquei totalmente tranqüilo, a partir dali, mas depois de agradecer a gentileza, perguntei-lhe apenas se podia dar um telefonema pra casa. Ele disse que a casa era minha, liguei pra casa e o telefone só chamava. Uma, duas… dez vezes, fui ficando louco outra vez, e me lembrei que a merda do telefone fazia dois dias, que estava com um problema, de chamar, mas ninguém ouvir a campainha. Deduzi que logo após me salvar, minha santa (Que tá ali gritando com os anjos!) foi dormir. Conversei algumas banalidades com o senhor da fábrica, alheio, vagamente concentrado no que o mesmo falava e maquinando qual seria minha saída. Nesta época não tínhamos celular, como morávamos naquele lugar pequeno, achávamos que não precisaríamos. Pois é precisei e não tinha, entrou nos planos imediatamente. Pensei cinco minutos, olhei pro relógio: 00h20. Me despedi do homem, que relutou pra que eu ficasse, mas eu, Damien que era, me danei no mundo.

A estrada era um breu só e não se via uma alma, nem eu me esforcei para isso, até para não tornar meu intento mais mal-assombrado do que já estava. Acendi o cigarro, santo anjo e minha mãezinha na cabeça (não me importo de ser esse regredido, essa anti-sublimação!) e pé no mundo, havia até me esquecido de umas coisas que vi. Andava contando os passos, no sertão sem fim, nada era referência, apenas a caatinga e a estrada, ou mais uma ou outra casinha distante umas léguas umas das outras, onde só se avistavam as luzezinhas ao longe, e o preto do infinito, o coaxar dos sapos e as cantigas dos grilos. Os passos não atingiam números muito altos, pois andando, pensando e falando sozinho, eu me perdia nas contas e além do mais todo de preto, um casaco preto e uma cara bem carregadinha, e não era pra menos, não parava carro nenhum para dar carona claro. Doido só eu!

Olhando pro chão para não está referenciando, árvores perdidas ou postes de energia elétrica, fui surpreendido por um barulho de passos, vou erguendo a cabeça e olhando, quando vejo que é uma pessoa, fico totalmente absorto, a silhueta vinha em alta velocidade caminhante na minha direção, aliás, só tinha aquela direção e a oposta, pois é sempre isso. Continuei andando,quando vou conseguindo visualizar melhor,a figura já estava muito perto, porque estava nublado, perigando chover, que era só o que me faltava para melhorar mais ainda essa moda, e o campo de visão era mais estreito ainda. Parou me olhou nos olhos, e me pediu um cigarro. Disse comigo mesmo, putz grila, don’t “believo” nisso! Tirei o cigarro do bolso e fui logo perguntando: – Ôxente, Damien, tu ia pra onde? E ele: – Sei lá? Tava só andando! E tu, o que é que tu faz a essa hora por aqui e a pé, porque eu jurava que tinha te visto passar de carro? Pensei que filho da mãe de cego pra ver bem que só a porra, e disse: – Pois é, estourou dois pneus do meu carro e eu tive que deixá-lo lá na cerâmica. Ele foi dizendo que era muito azar meu, me contou umas três histórias apavorantes sobre aquele pedaço de estrada, mas que ia me ajudar. Conversei com ele um pouco, ele parecia elétrico também, e me disse: – Olha tu anda muito devagar, e eu muito depressa, assim eu não vou ficar o tempo todo parando e te esperando, não. Vou na frente e peço a um taxista daqueles do posto para vir te pegar. Gostei da idéia, além do mais não ia ter saco de ouvir Damien conversando certas filosofias cabulosas, estando ali e tentando chegar em casa. Tive o disparate de pensar, assim, naquela circunstância, mas eu ia fazer o quê? Deixei ele ir na frente e fui diminuindo o passo, porque já tinha andado pra jumento nenhum botar defeito e porque jurava que logo mais o táxi apontaria na pista. Como eu disse Damien, andava pra caralho e rápido, num piscar de olhos ele desapareceu no negro da noite. Ledo engano, a coisa foi demorando muito, meu relógio já marcava uma e meia da madruga e eu voltei a ter esperança de novo somente nas minhas cambitas finas. Apressei o passo, meia hora depois, totalmente exausto, suando muito, com aquele frio do suor me queimando do gelo do vento, fui vendo o posto, na beira da estrada, batia os dentes e caía uma garoazinha bem fininha daquelas que bate e espeta. Pensei, pronto chegou quem eu mais temia. E apressando o passo, uma vez que o que eu mais queria era chegar na santa casa. Quando ia passando na rua em que entro para ir rumo ao meu destino, vejo Damien de novo. Ele vem em minha direção e diz: – Oxente, vem de onde? E eu: “Vai te lascar cara!”, porque tu não fizesse o que dissesse que ia fazer? E ele: – E eu te vi, aonde? Eu já tava irado, peguei ele pelo gogó e disse: – Tu num ta brincando comigo não, né? E ele: Não me lembro de ter lhe visto! E eu: -Damien, você não disse que vinha chamar um táxi? Ele disse algo e foi puxando a roupa, que rasgou, agora com água naqueles olhos redondos e assustados de criança amedrontado. Aí eu soltei, e ele saiu chorando e gritando: – Eu sou cego, eu não vi ninguém! Novamente me coloquei no caminho de casa, quando vou chegando na rua dos pioneiros, coloco a mão no bolso para puxar um branco e dar umas baforadas finais, para pensar no que dizer e o que fazer no outro dia, só que não tinha mais nenhum e aquela hora tudo estava fechado, não havia como comprar. Entrei em silêncio, para não acordar ninguém, quando vou passando da sala pro quarto, tropeço num colchão que está ali no meio do caminho, agora dentro de casa. A Santa se levanta com os olhos nas mãos e diz: – Ôxente, tá cego meu filhinho? E eu imaginando um sacrilégio ali mesmo, depois de tudo aquilo, digo: – Minha Santa Idolatrada, não me faça caridades e nem me fale, pelo amor de Deus, em cego e nem em cegueira nenhuma por um bom tempo! Caí na cama, exausto, fiquei cego de tanta loucura, mudo de tanto cansaço e surdo de fome. No outro dia acordei meio ruim da visão! Passei um tempão sem ver ou ouvir, Damien!

O Viés da Contradição
por Rá

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* Fernando “Rá” Vasconcelos é paraibano, médico, pirado, sem noção, que ainda vai morrer do coração. Mora em Recife.