A gaivota cega (parte 3)

por Raul Córdula*

Um bate-boca educado, mas severo, fez o guarda tirar a multa da zona azul que Betânia tinha levado. Em volta da Praça do Arsenal existe como que um mercado de multas de trânsito provocado pela excelência burguesa que lá freqüenta. Com os óculos no nariz Betânia foi dizendo:

– Ainda bem que você chegou. Desde ontem que quero lhe mostrar umas fotos de pássaros mortos tiradas nos arrecifes e uns detalhes de números e escalas dos navios, coisas estranhas, a cara da pintura que faço agora.

A manhã era deslumbrante, a Torre Malakoff brilhava ao sol e a Praça cheia de gente. Sentamos no lugar que restava, num banco protegido pela sombra.

Percebi sem surpresa, como num filme, como se o hoje fosse continuação do ontem, que o homem cego ocupava a outra ponta do banco. Desta vez, porém ele estava claramente cego, se compunha de óculos escuros, bengala e cachorro, vestia jeans, tinha um boné azul com o monograma N Y, calçava tênis antigos e usava uma malha branca escrita em bodoni vermelho: I am blind. Help me, Tank you. Ninguém poderia dizer com mais eloqüência que era cego, somente um cego como eu não tinha, ontem, percebido. E ninguém poderia proclamar com tanta elegância como sofria sua própria cegueira, como necessitava de socorro, como precisava do outro. O que me arrebatou, porém, foi a coincidência daquela frase com fatos de minha vida, com a memória que aquela mensagem aflorou em mim: uma antiga crônica de Geir Campos escrita em Nova Iorque, onde ele falava de um cego com uma tabuleta no pescoço onde estavam escritas exatamente as mesmas palavras. Mas o cego americano pedia explicitamente dinheiro com uma lata vazia de sopa Campbel na mão, esmolava em inglês. Inspirado no poeta Geir, há uns 40 anos escrevi as mesmas palavras num desenho que fiz em São Paulo.

Nosso cego falava para poucos e raros que algum dia na vida embarcaram na aventura de discutir a cegueira, denunciava com dimensão poética sua angústia, seu apelo e sua gratidão. Naquele momento ele gritava, silenciosamente embora, para mim e Betânia que, estupefata, acabara de ler sua mensagem na camisa. Com a atenção contida na posição das orelhas ele nos dizia que nos estava percebendo como um pescador chinês que conheci no lago de Itaipu pressentia o peixe antes morder a isca. Ele nos estava pescando com sua bengala e seu cachorro, fomos fisgados.

Fiquei meio sem saber o que fazer, não tinha trazido vinho, pensava tomar uns wiskys no 28. Mas minha conversa com Betânia supriria o transe existencial que a presença do cego provocava. Vimos as fotos, falamos de pintura, novas criações, esculturas que Paulo Andrade executava para mim. Falamos da Torre Malakoff e sua função cultural, da história do Recife, das ruas e das calçadas. A cada momento da conversa, quando meus olhos viajavam em derredor e esbarravam com o rosto do cego, seu sorriso giocôndico denunciava sua atenção. Ele ouvia com detalhes nossa conversa embora estivesse longe demais para isto.

Frases pintadas na camisa, tabuletas com frases/títulos, pichações, grafites, mensagens gráficas, tudo isso faz parte da minha pintura. Desde meus primeiros experimentos a garatuja, a escrita, a caligrafia reivindica espaço no meu desenho. No pique da nouvelle figuration que invadiu o mundo como a pop art francesa, quando o Rio de Janeiro era a capital da cultura brasileira, eu me encantava com a arte mostrada pela Galeria Relevo, onde vi um dos artistas que mais me influenciaram, o espanhol Juan Genovés. Num de seus desenhos havia um homem com uma tabuleta no pescoço, nela seu próprio rosto. Acompanhando sua obra, a de outro espanhol chamado Aroyo e dos argentinos Berni e Segui, me sentia seguro caminhando na aventura da vanguarda que falava brasileiro, portenho e castelhano. Em 72 pintei minhas últimas figuras, uma série de guaches em memória do meu avô Vicente Trevas. Esta série iniciava com um desenho de um homem de costas, no lado esquerdo, e de frente, no direito. De frente seu rosto era felino e numa tabuleta pendurada no pescoço se lia: “Meu Avô Matou Uma Onça”.

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*Raul Córdula é pintor, paraibano, fundou o Museu Assis Chateaubriand de Campina Grande, onde foi diretor; foi supervisor da Casa da Cultura de Pernambuco; hoje e responsável pelo intercâmbio da Casa França-Brasil e representante da Associação Cultural de Marselha. Assina Córdula