Hilda Hilst. Tu não te moves de ti
“Quero outra coisa!”, pensava lembrando da Dulce Veiga. “Queria ser Caio Fernando Abreu, pelo menos eu não estaria mais aqui”, olhava pela janela e via a chuva cair. Uma chuva que já dura quatro meses. “Estou embolorando”.
Saiu, decidiu encarar o temporal, que vai e volta o dia inteiro. “Estou embolorado”. Caminhava em direção ao Conic, gesto mecânico. “O que vim fazer aqui? Droga!”. Foi para o Conjunto Nacional. “Porra de chuva!”.
“Um café com leite, por favor”. A garçonete entrega o pedido, “mais alguma coisa, senhor?”. “Eu quero outra coisa…”. “O quê? Sei…”, coloca o indicador para cima e o olha nos olhos, “…quem não quer?”.
Olhava as nuvens que passeavam em cima do Teatro Nacional. Nuvens pretas carregadas, como se um faraó enfurecido quisesse de volta os seus domínios. “Puta tédio”. O dia ficou cinza quando a chuva parou. Lembrou de São Paulo, sua casa a vida toda. “Tô aqui agora, enfrentando lama”. Dois anos já. É tempo pra burro.
“O que deve estar passando no cinema?”. Pôs o casaco e saiu andando por aí. “Um Ibirapuera que não acaba nunca…”. Essa foi a impressão que teve no primeiro dia na cidade. Neste tempo nem pensava nos trinta anos que estava prestes a completar. Trinta anos de inutilidade. “Um cinema no meio de uma praça, só aqui mesmo”. A sala estava fechada. “Isso nunca aconteceu antes, que será?”
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Como fazia pelo menos três vezes por semana, sentou-se na casa de chá em frente ao cinema. “Um mate gelado com tangerina e uma torta de frango, por favor”. Gostava de freqüentar aquela sala de projeção, apesar da fama do lugar receber uma horda de culturetes. “Ver um filme iraniano de vez em quando não faz mal a ninguém”. Terminado o filme gostava de descer a Rua Augusta, sentido Jardins. “Quem sabe eu encontro alguém conhecido e troco um oi”. Mas nunca encontrava, coisa típica desta cidade. Quebrava à direita até chegar num bar da Consolação, onde ficava até a hora em que as Drags chegavam, sinal de que o metrô logo ia fechar.
“Vontade de outra coisa”. Estava cansado desta cidade, do tudo ao mesmo tempo agora. Conhecer gente nova. Construir uma nova vida. A idéia amadurecia a cada dia.
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O mar mais azul que já tinha visto. Diferente de qualquer outro que já tivesse experimentado. “Realmente o nordeste tem dos seus encantos”, acaba admitindo, mesmo com seu espírito ranzinza de cidade grande. Olhava a Ponta do Seixas tomando um lapada de Serra Limpa, como diziam os nativos. Sentado naquela praia com a areia branca e sob os pés.
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EM REFORMA, dizia a placa instalada na porta de vidro que dá acesso ao hall do cinema. “Porra, justo hoje que eu não tenho nada para fazer. Em shopping, nem pensar!” Uma exposição na 508 foi a alternativa que encontrou para ocupar seu tempo, para atingir a meta de não pensar em nada.
Sentou no café do Espaço Cultural:
– Um expresso com conhaque, por favor. – Não servimos com conhaque, apenas café com leite, capuccino e expresso simples. – Um expresso grande, então. “Porra de lugar em que ninguém gosta de café”. Da cadeira onde estava dava para ver a exposição do vão livre.
Enquanto olhava os quadros, não conseguia evitar a conversa do grupo que estava na mesa ao lado. – Estamos montando uma peça genial; o diretor do H8 vai trabalhar com a gente, dizia um. – Será uma sátira de costumes; o Gilvan vai fazer a tia Maricota, que representa as mulheres entrando na menopausa, completa outro. – Uma esquete clown vai dar todo o colorido ao projeto, concluía um terceiro. “Caralho, tinha que cair do lado de um grupinho de comediantes meia bomba!” Levantou-se antes do café chegar e saiu.
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Passou o dia olhando para aquele azul que ainda não conseguia entender. Agora via a lua nascer, redonda, enorme, laranja. E vinha sobre aquele mar…
“O que fazer agora que a noite chegou?”. Uns poucos conhecidos pela cidade. Um café freqüentado por pseudo-artistas e mulheres malucas: – vamos para a feirinha, fazer o quê? Música eletrônica e um sotaque estranho a seus ouvidos acostumados a “erres” cortantes e “esses” sibilantes.
– Nosso roteiro será bancado pela Secretaria de Cultura do Estado e em breve vamos viajar pelo Brasil inteiro às custas dos festivais de cinema. – Passei os últimos meses na Europa me especializando na adaptação de literatura ibérica para o cinema.
– Minhas aquarelas estão em três exposições pela cidade, na loja do Jorge e nos dois estúdios de tatuagem do Germano; afinal de contas eles são meus irmãos… A necessidade de um café bem forte o fazia suportar as asneiras que os “pseudos” insistiam em cacarejar uns para os outros. – Meu filho, me traz logo o café e uma dose dupla de conhaque, pediu, angustiado, para o barman. “Um calor dos infernos, esses caras falando de si mesmos e se lambendo. Definitivamente meu ouvido não é penico”.
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Pegou o último trem da noite e desceu na estação Vila Madalena. Pensou em descer pra casa, mas acabou dando meia volta e entrou na casa noturna que freqüenta desde o começo dos anos 90. “Som retrô é uma boa hoje”. Algumas caras conhecidas, pessoas com quem nunca conversou, mas que vê pelo menos uma vez por semana há dez anos. “Estamos envelhecendo e continuamos na mesma merda”.
Uma garota passa pela porta de entrada. A mesma garota. “Já faz dez anos”. Sozinha. – Você está sozinho? – Sempre estou. Passam o resto da noite juntos, como há dez anos. Acordam ofegantes, uma pontada de paixão nos olhos, como há dez anos. Despedem-se com um beijo, como há dez anos. Esquecem de trocar telefones, como há dez anos.
“Eu quero outra coisa. Amanhã embarco para a terra onde o sol nasce primeiro”.
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“Ainda preciso do café”. Só se lembra disso quando já está longe do Espaço Cultural. Caminha pelo menos quatro quadras até encontrar um café expresso, que bebe de um gole. “Agora saio até a 204, alugo um filme e volto pra casa”. Meia hora de caminhada e nenhuma esquina, nenhuma rua. Quadras residenciais e quadras comerciais se intercalam sem fim, nas asas desse pássaro que saiu da cabeça de um megalomaníaco.
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Nada aconteceu a noite toda. Amanheceu o dia com os pés molhados e cheios de areia. “Acho que preciso dormir. Mais tarde decido para onde vou. Aqui nunca vai dar pé”.
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No avião, a caminho do mar, observa sua cidade. “Em breve te vejo de novo”, pensou, sabendo que não voltaria tão cedo. Agora era um cidadão do mundo.
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Saiu da locadora com alguns filmes que ainda não tinha visto. Olhou para cima, como já não fazia há muito tempo. “Realmente o céu daqui é lindo”.
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Outra Coisa foi o quinto lugar no Prêmio SESC de Contos Machado de Assis, em 2004, e é integrante da antologia publicada pelo concurso.
Texto animal, Beta. Que vertigem…