Yeah pussy blues (de volta à rua do fogo)

por Biu*

Descendo a Rua da Aurora, atravessando a Rua do Comércio, à esquerda, há a Travessa Sta. Rita, que vai dar na Rua Sta. Rita, que vai dar na Rua da Praia. Duas esquinas antes está a Rua do Fogo, também chamada da meretriz, um trocadilho infame com sua paralela sacra, a da Matriz, também uma homenagem à senhora M., a cafetina do lugar. A Rua do Fogo, apesar do nome conveniente às atividades que por lá se instalaram, chama-se assim devido a um incêndio há muitos anos, que começou por lá e foi até a Igreja de Sta. Rita, mas não entrou, e teve como única vítima o padre da cidade.

Naquele tempo só havia no lugar a Igreja de Sta Rita, e a Rua do Fogo era uma estrada cortando um gramado onde aos poucos foi surgindo um sobrado onde aos poucos foi juntando gente, em sua maioria párias. O prefeito não gostava de párias, mas eles votavam por qualquer trocado. A população não gostava de párias, mas eles se vendiam por qualquer trocado. O padre Z. não gostava de párias, e foi deixando isso cada vez mais claro em seus sermões. A população se indignava, o prefeito se comprometia, mas isso tudo só durava até a comunhão. Então, um belo dia, depois de ler sobre Gomorra e discursar sobre Pompéia, o padre Z. simplesmente cansou de esperar pelo bom senso de todos e terminada a missa foi pessoalmente à Rua do Sobrado, no segundo andar no qual morava uma viúva e suas duas filhas, a morena e a ruiva. Pária é tudo igual, esses servem. Penso nisso nesses termos e sorrio enquanto desço a Aurora…

Apesar de sua raiva e do espanto da viúva eles começaram a se entender. A viúva ofereceu-lhe água, apontou-lhe um banco, contou como chegara ali, como era difícil sua vida, de seu desejo de saber mais das coisas de Deus e de como preocupava-se com a educação das filhas, principalmente da mais jovem, a ruiva, que passava a maior parte do dia e boa parte da noite na rua, e nesse ponto começou a chorar. O padre voltou-se para a mais jovem, para a mais velha, para a viúva, passou algum tempo calado, olhando para uma vela sobre a mesa, e então, perguntou à viúva se podia falar com sua filha em particular. E logo em seguida arrependeu-se, pois a casa era só aquele quarto, e o resto da família foi saindo calada quase que imediatamente, sobrando subitamente apenas o padre e a garota.

Qual sua idade, minha filha? – Quis saber o padre. Uns dezessete – Foi a resposta da garota. Uma mentira.
O que tanto você faz na rua o dia inteiro? – Quis saber o padre.

A ruiva estava sentada em uma cadeira ao lado de uma mesa em frente a um armário, tinha cabelos longos, olhos claros e corpo de mulher. Ela olhou para frente, para além do padre, depois à sua direita, depois levantou a perna esquerda e apoiou o pé na cadeira, depois, começou balançar os joelhos, dobrou uma perna sob a outra, apoiou ambos os pés no assento, uma de suas mãos segurava uma coxa, a outra fazia cachos, seu olhar passeou pelo teto, depois por ela mesma, e, finalmente, quando tornou a encarar o padre, este estava de joelhos, perplexo, rendido. E então, algum vesúvio, e o holocausto, não se sabe como. A garota sai correndo, a mãe entra gritando, logo volta, mas não se afasta, até ser retirada pelos vizinhos, que mal têm tempo de salvar suas próprias coisas e a si mesmos, nesta ordem. Em pouco tempo a Rua do Sobrado virou a Rua do Fogo, a Rua dos Párias, apesar desses terem a partir daí espalhado-se como brasas pela cidade, em um incêndio latente que sempre volta ao foco para celebrar seu estopim.

Finda a Aurora, atravesso a Rua do Comércio, dobro à esquerda na Travessa, desço pela Sta. Rita em direção à praia, paro duas esquinas antes, cá estou novamente. Entro na casa, dirijo-me ao balcão, peço algo, olho ao redor, lá está a velha M. em um canto, observando o lugar com olhos faiscantes.

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*Biu é paraibano, farmacêutico e faz quadrinhos.

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