Estilhaço um

por Biu*

Eu sou um mau agouro. Sequer sei se estou morto ou vivo, mas isso não importa, se estou vivo é porque todos estão mortos, então, eu também. O tempo é cruel com quem o desafia. Esse é meu lamento. Tem o som de estilhaços, os cacos de um espelho inquebrantável.

Minha história é nebulosa, sem pé nem cabeça, uma nuvem de dados, como costumam agora chamar, seu começo é incerto, a conto um pouco por tédio, um pouco por necessidade, e, mal começada, já lhe anseio o ponto final.

Eu sou brasileiro de nascença, não sei mais de que região, filho de índios, negros e brancos vira-latas, primo de mouros, sobrinho de tudo quanto é bicho do mato, católico da porta pra fora, da porta pra dentro depende da lua. Em minhas veias, se ainda as tenho, correm o Paraíba, o São Francisco, o Negro, o Solimões, o Amazonas… Cheio de mim mesmo, tenho de transbordar minha história para poder esvaziar-me dela e livrar você de mim, porque, creia-me, eu sou um mal, um cancro que deve ser extirpado para que os outros gozem a vida em sua plenitude.

Ouça, nem sempre foi assim, eu já temi a morte, como todo mundo, como todo mundo nasci de uma mulher, cresci em casa de muita gente, uma casa grande, imponente, esparramada na paisagem como um buda em seu assento, cheia de regalias, um jardim, um galinheiro, um pomar, um açude, um chiqueiro, estribaria, curral, servos, escravos, e imensas plantações de cana-de-açúcar, ou café, ou algodão, ou borracha. Branco, verde, amarelo ou negro, não importa a cor do ouro.

Ouro: Espadas para extraí-lo, paus para mante-lo, copas para perpetua-lo. E foi assim, traçando essas cartas marcadas, que logo cedo começou para mim a relação que me definiu: Em meu corpo as marcas que no começo exibia com orgulho, depois com medo, depois com indiferença, pois já não sei onde termino eu e começam elas, minhas espiroquetas. Foi por iniciativa delas, para satisfazer seus caprichos, que mandei construir a sala dos espelhos, meu esquife de vidro reluzente de onde observo o mundo que me ignora. Mas eu existo, eis aí um abacaxi que vocês vão ter de descascar. Para o seu azar, eu existo. Vá até o espelho mais próximo, encare o fato de frente e tente não se assustar.

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*Biu é paraibano, farmacêutico e faz quadrinhos.

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