por Roberta AR
A ideia de partilha, de compartilhar, repartir, sempre foi vista como uma qualidade louvável na cultura ocidental, mas estamos falando aqui do século passado.
Minha adolescência foi analógica, meus primeiros registros fonográficos foram adquiridos ainda em vinil, ou em fita cassete. Lembro que a gente gravava (digo no plural, porque a partilha sempre é em grupo) em fita direto da rádio para poder ouvir no walkman, que gastava pilha adoidado. Claro que a gravação nem sempre era precisa e quem tinha gravador com dois decks fazia o serviço de copiar fitas certinhas para os amigos.
Com o avanço das tecnologias digitais e, principalmente, sua popularização, trocar produtos culturais, inclusive as mixtapes da minha adolescência, ficou bem simples. Uma conexão na rede, um link, um clique e pronto, está lá seu disco todo para ouvir, o livro, que deve custar por volta de quarenta reais, ou o filme que você não tinha vinte reais para assistir no cinema. E, por sorte, ou azar de quem quer controlar isso tudo, existe uma comunidade disposta a compartilhar tudo sem ganhar nada com isso. Sim, de graça.
Daí você diz: quem produziu não estava fazendo um trabalho filantrópico, precisa ser remunerado por isso, etc. Sim, claro, mas o que se cobra é justo para quem consome? Vejamos: você compra um ipod por cerca de mil reais e para colocar legalmente as 40 mil músicas nele pelo preço considerado justo pelas gravadoras, por volta de R$0,30 cada,terá que desembolsar a bagatela de R$ 12.000! Boa sorte, legalistas.
Vivemos num país de terceiro mundo, em que, segundo dados do Ministério da Cultura (isso vi em palestra com Juca Ferreira), apenas 5% da população entrou ao menos uma vez num museu, mais da metade da população nunca foi ao cinema, para citar apenas algumas das privações pelas quais passamos. É justo cobrar de um pai que ganha um salário mínimo que pague mais de trinta reais num livro de Monteiro Lobato (só para citar um exemplo) para seu filho para garantir os direitos autorais dos herdeiros do autor? Digo isso porque pela lei brasileira a família continua recebendo os direitos até 70 anos após a morte do autor.
Nem sempre foi assim, a atual lei foi feita no aniversário de 60 anos de Mickey Mouse para que o direito fosse garantido à corporação Disney. O interessante é que a indústria Disney sempre fez questão de usar material de domínio público, que são fonte de seus principais filmes, como Alice no País das Maravilhas, Pinocchio, Branca de Neve, A Bela Adormecida, e por aí vai.
Assisti recentemente ao filme RIP – A Remix Manifesto, que defende uma nova forma de ver o direito autoral. Já dizia o Chacrinha que “nada se cria, tudo se copia”. Em um tempo de mashups e samplers, a remixagem é inevitável. Nada mais é original, mas uma transformação do que já foi feito. O diretor do filme roda o mundo atrás de experiências de mixagem e acaba chegando nos morros cariocas e experimentando o funk.
O Manifesto Remix, de Brett Gaylor, se resume assim:
1) A cultura sempre se constrói baseada no passado;
2) O passado sempre tenta controlar o futuro;
3) O futuro está se tornando menos livre;
4) Para construir sociedades livres é preciso limitar o controle sobre o passado.
Controle parece que é tudo o que as grandes corporações querem exercer sobre expressões culturais, pois quem lê, vê filmes, ouve músicas livremente, pode pensar livremente e questionar o que está estabelecido.
Daí surgem diversos projetos de controle da internet, que seria a principal “vilã do compartilhamento”, pois agora quem compartilha é um pirata que deve ser perseguido com veemência (engraçado que um dos grandes sucessos recentes da Disney é exatamente um pirata, até nisso eles podem fazer o remix e o resto dos mortais não). Mas com as inúmeras tecnologias que surgiram para nos fazer gastar mais (claro, foi essa uma das intenções da criação da internet), apenas sumir com a internet não resolveria o problema.
Outro dia tomei conhecimento de festas que têm acontecido nas periferias de Buenos Aires onde bailes semelhantes aos do funk carioca distribuem cumbia villera (o ritmo do momento) por bluetooth. O DJ libera os arquivos do palco e as pessoas, milhares delas, baixam direto no celular.
Alexandre Hannud, em seu artigo O aspecto não econômico e não cultural do direito autoral, publicado no blog Trezentos, me deixou assustada com o que ele chama de “Efeito Pato Donald”: “É a percepção de que, ao permitir o controle sobre uma ambientação ou personagem com o qual identificamo-nos e compartilhamos uma simbologia comum, ao controlar as figuras com que crescemos a representar em nossas mentes os mitos e arquétipos com que raciocinamos, o direito autoral expressa-se como um instrumento de controle do inconsciente coletivo ainda mais diretamente do que de controle dos fluxos econômicos ou de distribuição da informação.”
Como lembrado em Remix Manifesto, o direito autoral foi criado para incentivar a criação, com o Estatuto de Anne, que garantia ao autor que ganhasse com o que produziu, mas buscando equilibrar o direito do autor com o do público e as obras se tornavam de domínio público 14 anos após sua criação.
Uma solução parecida com a primeira lei parece ser buscada por licenças como a Creative Commons, que é o centro de uma polêmica que envolve o Minc e o famigerado ECAD no Brasil. Autores licenciam seu produto e garantem que mal-intencionados não roubem os direitos das obras e ganhem com isso e, ao mesmo tempo, possibilitam que as pessoas possam usufruir do seu trabalho, nas condições previstas na licença.
Para mim, o caminho é esse, pois assim os autores podem ser recompensados pelo que fazem, mas sem que as pessoas sejam privadas de obras culturais porque seus donos cobram muito caro, ou, ainda pior, podem decidir tirá-las do mercado. Mas enquanto isso não acontece, você já adquiriu seu tapa-olho?
Cante comigo o jingle da campanha internacional Copiar Não É Crime:
Para ver e ler:
RIP – A Remix Remix Manifesto: no Youtube ou para baixar.
O aspecto não econômico e não cultural do direito autoral
Documentário Copyright Criminals
Mantras da irracionalidade – Direito Autoral
Experiências colaborativas:
Overmundo
(o Facada também!)
Muito, muito interessante o texto, Roberta. Concordo em gênero, número e grau.
Há braços!!
Legal, Mauro. Sempre boa sua visita aqui.