Por Adriano de Almeida*
Fechando a porta, ouço o violão que ressoa no quintal. Meu avô pigarreia o fim da vida. Eu quase não respiro, me concentrando em reprimir o asco.
Como envolvido em plástico, protegido, passo pudicamente a palma pelos móveis, não me expando. Evito gorduras e nódoas. Há ratos no quintal, eu bem sei. Há um concerto de seres perversos, percevejos e pulgas, talvez até morcegos. Concerto que seres avançam pelo teto, esparramam-se no chão, perdem-se entre os móveis, rastreando sombras.
Em um instante tudo pode acontecer. A casa está sobre fossas. O cheiro irrompe no escuro e diz direta a meu estômago. Tento esquecê-lo, atenuá-lo, tento resistir. Quem sabe reagir. Inútil. O cheiro exercerá sua doutrina, cavará suas ruínas: porque o caso é o cheiro existir.
Sim, por que não reagir? E o que é reagir? Em que momento reagir não é também recusar, não é também esquecer?
Ando descalço, sozinho, a casa é grande e cheia de porões. A janela chupa a noite pro meu quarto e faz tremular os meus mais tolos pensamentos. Esboço um movimento evasivo, espécie de força aparvalhada, e acabo quieto e bambo como um a no vento.
Enquanto aliso o branco do lençol, neste momento mesmo, o avô tosse.
O certo seria me entregar, desatolar, desatar, soltar os véus – tocar o pútrido (para torná-lo puro?). Devia era irmanar-me com o escuro, deixar-me ser também aquilo, as partes brancas de minha pele e do lençol saberem outro jeito de ser inaugurar – isso seria talvez – seria isso a esperança?
Lá embaixo o mesmo som de cordas. Elas parecem abrir caminho para as criaturas, concatenando com seus passos. A casa toda é um organismo vivo, ritmado, assustador.
Tudo – meias, luvas, vedações internas –, tudo para seguir a saga. E o cheiro e o jeito da comida de hospitais. A janela chupa a noite. Traz a tosse do velho, seus cem segredos de senhas e filas.
Curvilíneo e descarnado, ele, o avô, velho pó, assimilou numerações excêntricas, ouviu sentenças veladas e a cantilena das bulas, zanzou por corredores brancos e uiva lá embaixo o seu destino calcinado.
Em zelo incorruptível, as outras filhas da espera, pernas de varizes, braços de sacolas, silenciam maldições, suportando as filas. Bocas de gaze. Em corredores brancos, aventais nervosos erram entre as macas e os guichês. O avô voltando cada vez mais furado, a boca feia, desbeiçada. No catre a voz da dona faz promessas, a mão tremendo sempre:
– E a família choooora, santa!
– Só Deus, menina. Só Deus.
Cada qual pode guardar suas lembranças, falamos todos muito pouco. A avó é surda e pouco sabe crochê, nunca dançou, falou a vida inteira sem ser entendida e está cansada. O filho é esquizóide trina as cordas de nylon, fios do tempo tão tênues. E o avô? – pergunta que viaja entre as escalas. E o que é de seu Laor? Talvez ele imagine um prato muito suculento, um prato de macarronada, muito molho. Um pedaço de abacaxi, que tanto ama. Laor não pode comer. Os olhos cheios de alegria urgente, a boca seca, e uma garganta que é um infinito de saudades, um pântano esquecido. Seu Laor, o avô, não come mais. Agora faz a vida na madeira: desenha trecos, faz ferramentas, esculpe a vida. Cospe de lado.
Laor, o avô – ele tem câncer.
E nessas horas, que a noite prima em ser passado; e nessas horas, que todo peso agora desce, que tudo é escuro e deselegantemente sério, Laor aperta a mão no peito, ajeita-a na garganta e emite um som que finjo não ouvir.
A noite suga a teia da memória. A avó balança na cadeira. Não ouve o som das rádios piratas, nem dos carros, que vão longe. O horror tateia os móveis. Será sempre assim? Nas fotos de Laor há um dorso novo – ele era o mais bonito de toda uma numerosa e saudável geração que percorreu cidades e cidades, todos bêbados, todos mancos, todos tristes – só que Laor tocava trompete. Na foto via-se o dourado do instrumento. Laor, bochecha cheia e avermelhada, soprava firme o tubo milagroso – Este Laor, foste dado!
O quarto fermenta, desfilam algumas cores pelo escuro. Parecem aviõezinhos, tufos de algodão, espuma. Aperto os olhos: a cor aumenta, vai e volta. Aperto o peito. Há muitos séculos fazem isso, apertam o peito. Laor aperta o peito e pode esfarelar-se, diluir-se. Me lembro que batia firme um murro na parede, fazia até tremer a casa. Com ele ali, dizia, ninguém faria mal à gente. Hoje se esfarinha e ninguém vê.
Laor, a vida é curta e cabe aqui na minha mão assim: a mãe tem culpa, o pai tem culpa, eu tenho culp… caiu no chão a espuminha branca. Andou voando e se desequilibrou. Os voos mais heróicos um dia têm sua queda. É a regra. Como a Gramática que estudaste, com aquelas regras que jamais poderás abolir. Sim, porque abolo não existe, tu te lembras? Aceitar, então, Laor? Como? Como ver em minha mão o que não há? Como ver as espuminhas? Como ver as nuvenzinhas ziguezageando livre do concerto. Igual àquele homem do mar, que Laor leu pra mim: sozinho, contra a força.
A avó balança em frente da TV, Laor tritura a pele da madeira, o tio dedilha a solidão absorta. Então é sempre assim? A crueldade do que não se move. Laor, não; alguma coisa come vagarosamente. O tempo, e seus desígnios. As células. Laor tritura a pele da madeira – trituram-lhe mãos muito mais duras, bem menos vagarosas e ainda quando dorme. Puseram formas esquisitas em seu rosto, brincaram de tirar-lhe as carnes, cismaram de arrancar-lhe os lábios, deram-lhe seca à boca. Concluem: Laor é sem secreção. É sem segredo.
O tio dedilha um mundo inteiro. Laor e a vó sorriem vagos. Sempre assim. Olhos ressabiados: os velhos adivinham coisas que não vemos. Naqueles momentos tensos, naqueles suspiros largos, enquanto dorme a avó na cadeira, suspendendo o tempo – cadeira feita por Laor, mãos ágeis contra o tempo, mãos grossas contra o peito, mãos hábeis e obsessivas, mãos vivas; – era então que eles sabiam: sempre assim.
Os musgos e os resmungos se acavalam em confraria. As assembleias voam velozmente noite adentro. Resisto à cama. O último cigarro iluminando o breu. Escuto o respirar pesado. A casa sua, o concerto. Eu.
A nave inteira – suja cega surda – silva. Eu vou sumindo no intervalo claro que antecede o sono, eu vou seguindo.
Um marinheiro novo já cansado das marés, do sal denso dos mares. Da estúpida viagem.
São Paulo, 1998.
E o avô morreu exatamente nesse ano.
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* Adriano de Almeida é paulistano, pai, escritor e professor de literatura.
fuderoso.
Valeu, querido.
Eu sempre gostei deste texto, sei como vc tem pudores em divulgar textos com teor auto biográficos, sei de tua recusa, pois tais textos não exatos, deixa entrar uma melodia impossivel de se dominar em sua totalidade, mas ´o texto é fabuloso, é uma experiencia tambem para quem ler, uma experiencia emocional e estética