Opúsculo humanitário

por Nísia Floresta*

III

Levantou-se então no horizonte da Europa aquele brilhante meteoro que surpreendeu e deslumbrou o mundo com as luzes que despedia de seu foco. A Grécia teve leis mais brandas. Solon, mais sábio legislador que os sábios do Oriente, e menos severo que Licurgo, foi o primeiro que melhor soube harmonizar os interesses da pátria com as vantagens da civilização.

Depois dele muitos sábios ilustraram essa pátria que Homero, Sócrates, Aristóteles e Platão imortalizaram: o primeiro, por suas inimitáveis poesias; o segundo, pelo amor da sabedoria, pela qual morreu instruindo os homens; os últimos, pelo grande desenvolvimento que deram à filosofia socrática, apresentando em resultado os dois grandes sistemas que esses mais belos gênios do maior século da filosofia grega elevaram à mais alta potência, sem o caráter exclusivo que alguns filósofos lhes impuseram.

Algumas mulheres apareceram na Grécia, tais como Aspásia, mestra do Filósofo Mártir, Safo, Pericione, Telesila, e outras, cujo espírito, enriquecido dos mais variados e profundos conhecimentos, lhes atraiu a admiração da posteridade.

Os costumes da Grécia adoçaram-se, a mulher já não era ali um instrumento só de prazeres vãos e materiais. Ela associou-se aos trabalhos do espírito, que ocupavam os homens, e a civilização da Grécia apresentou-se sem rival ao mundo inteiro.

Mas a Trindade, anunciada entre todos os povos debaixo de diversos símbolos, não se tinha manifestado ainda aos homens no mais admirável e paternal sacrifício do Regenerador da humanidade. O brilhante facho do cristianismo não havia ainda baixado à terra.

Os gregos, cultivando a sua inteligência e atingindo a perfeição que os modernos tanto se têm esforçado por imitar, tropeçaram, entretanto, nas trevas do paganismo e, como os mais adiantados povos do Oriente, grosseiros erros cometeram.

A inteligência da mulher, conquistando a ciência, começava a distinguir-se, mas faltava-lhe o tipo da mulher cristã: sua mais nobre missão não podia ser ainda cumprida na terra.

O mesmo aconteceu depois entre o mais bélico povo da antiguidade, cujo nome bastava para fazer tremer os outros povos.

IV

As mulheres romanas assinalaram-se por heróicas virtudes, de que as mulheres modernas não têm dado ainda, como elas, exemplos. Porém, déspotas tais como os romanos não podiam compreender e ministrar à mulher a educação que lhe convém. Os déspotas querem escravos que se submetam humilde e cegamente à execução de suas vontades, e não inteligências que se oponham a elas e ensinem aos povos a sacudir o seu jugo. Fácil lhes foi, pois, deixarem na ignorância essa parte da humanidade a quem Deus em sua paternal previdência aquinhoou de maior porção de bondade e doçura.

O egoísmo desse grande povo a respeito do sexo revela-se autenticamente em duas palavras do sábio e austero Catão. Esse oráculo disse: “Tratemos as mulheres como nossas iguais, e para logo elas tornar-se-ão nossas senhoras e exigirão como tributo o que hoje recebem como uma graça.”

Infeliz Catão! Pensando assim da mulher, bem longe estavas de prever o leito de desesperação, que em Utica te preparavam os profundos desgostos causados pelos ambiciosos, inimigos de teus austeros princípios, a quem, como a ti, faltaram desde a infância esses anjos de paz que tão salutar poder exerceriam sobre os destinos dos homens, se os homens soubessem compreender bem sua grande missão na sociedade!

Nesse terrível momento, em que o estóico republicano, perdendo toda a esperança de libertar a pátria, e, não querendo dever a vida ao tirano que detestava, rasgou suas próprias entranhas, depois de ter lido o diálogo do sublime Platão sobre a imortalidade d’alma, nem ao menos pensou que, se uma mãe religiosa e esclarecida lhe tivesse dirigido os primeiros passos na vida, talvez tivesse ele feito melhor uso de suas virtudes e da leitura daquele admirável escrito.

Assim a orgulhosa Roma – apresentando nos fastos de sua história os pacíficos Numas, adoçando por suas instituições religiosas a natural ferocidade dos romanos, os Brutos, crendo servir à república por um furor que enluta a natureza, os Césares, subjugando o mundo pelo poder de suas armas, sempre vitoriosas, os Cíceros, extasiando os povos por sua eloquência – julgava-se quite para com a mulher unindo a esses nomes os das Lucrécias, das Comélias, das Vetúrias etc.

A detestável Fúlvia, picando com um alfinete a língua do mais ilustre orador romano, não seria antes para vingar o sexo, cuja condição aquela grande eloquência nunca procurou melhorar, do que para satisfazer o furor que se lhe atribui pelas Filípicas publicadas pelo célebre escritor? E essa ação horrorosamente repugnante, sobretudo em uma mulher, não lança como que um espesso véu sobre as severas virtudes daquelas respeitáveis matronas? Em uma sociedade em que a educação e o espírito das mulheres fossem rigorosamente cultivados, poderiam aparecer

monstros tais como as Messalinas, as Túlias, as Agripinas?

V

É uma verdade incontestável que a educação da mulher muita influência teve sempre sobre a moralidade dos povos e que o lugar que ela ocupa entre eles é o barômetro que indica os progressos de sua civilização.

Entre os bárbaros do Norte, e os selvagens da América e da Oceania, que papel representou e representa ainda a mulher, principalmente nas duas últimas regiões?

À fé, que muito humilhante seria para uma mulher dizê-lo!

Aqueles que têm viajado por esses países, ou lido a narração que de seus povos fazem verídicos historiadores, lamentam tanta degradação da espécie humana.

Deixaremos em silêncio a sorte da mulher da Europa na Idade Média, sob os Clóvis, Carlos Magno, Oton o Grande, Godofredo de Bouillon, Rodolfo de Habsburgo e Maomé II, vencedor de Constantino XII, último imperador grego, com o qual acabou o império cristão de Bizâncio, para dar lugar, entre as monarquias europeias, à primeira monarquia otomana.

Os cruzados – trazendo à sociedade ocidental o desenvolvimento da navegação, da indústria, das artes, das ciências, e as línguas que lhes foi preciso aprender para estabelecerem uma comunidade de ideias entre os povos de gênio e línguas diversas, preparando-lhe assim a época da Renascença, em que a Itália, e depois a França tanto brilharam – nenhum melhoramento fizeram na sorte da mulher.

À voz de Pedro Eremita, Urbano II, S. Bernardo, etc. corriam os reis e os povos cristãos à longínqua Palestina, para libertar os lugares santificados pelo Cristo, enquanto deixavam por libertar de férrea educação as mulheres, que Deus havia tão altamente enobrecido na Divina Mãe do mesmo Cristo.

Quanto sangue derramou a humanidade! Quantas vítimas sacrificadas sem nenhum resultado para ela! Que aberração, enfim, do espírito do cristianismo!

Mas era então assim que compreendiam a sua missão na terra os grandes senhores do Ocidente, longe ou dentro de seus suntuosos e sombrios castelos, cujo eco nos repetem ainda as legendas desses tempos.

No Oriente, as ciências e as artes fugiam espavoridas do solo que sanguinolentas guerras devastavam.

A Grécia esclarecida havia desaparecido, e povos bárbaros ou reis fanáticos profanavam o alcáçar das letras.

Aos filósofos, que encheram o mundo de admiração por sua sabedoria e pela beleza de seus escritos, sucederam imperadores tais como Miguel o Gago, que, não sabendo ler, proibiu se ensinasse a ler às crianças, e Miguel III, que, minado de vergonhosos vícios e desprezando como os seus antecessores a educação da mulher, mandara construir para os seus cavalos, que ele amava mais que a seus súditos, uma cavalherice cujas paredes eram incrustadas de pórfido.

O espírito das Anas Comnenes despontava nessas regiões manchadas por toda a sorte de crimes, como desponta em noite tenebrosa o clarão de uma estrela que brilha a furto no espaço.

A caridade, virtude personificada no sexo pela mãe do Redentor do mundo, e o heroísmo com que algumas santas mulheres suportavam o martírio, na esperança de uma vida melhor, podiam então somente consolar a mulher cristã. Feliz aquela que de fato o era, porque achava na fé, essa luz divina que nos esclarece a alma, um poderoso antídoto contra a degeneração do homem e um porto seguro de salvação.

Enquanto a civilização dormitava sob o anticristão e nunca assaz detestável regime feudal, que oprimia cruelmente as mulheres, e as cruentas guerras de religião proporcionavam ao feroz instinto de uma o sanguinolento e bárbaro triunfo da horrorosa Noite de São Bartolomeu, o mais funesto de todos os erros, o fanatismo, vomitava na Espanha e em Portugal o monstruoso flagelo que tem jamais oprimido a humanidade.

O tremendo tribunal do Santo Ofício, esse vergonhoso parto dos tempos modernos do cristianismo, tão fatal aos progressos da civilização, não queria encontrar nas vítimas que imolava a moral esclarecida, a virtude obstinada das Bororquias.

Assim, a educação da mulher ficou estacionaria, principalmente nesses países, que a natureza enriqueceu de seus mais belos dons.

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* Nísia Floresta Brasileira Augusta, pseudônimo de Dionísia Gonçalves Pinto, foi uma educadora, escritora e poetisa potiguar. É considerada uma pioneira do feminismo no Brasil e foi provavelmente a primeira mulher a romper os limites entre os espaços público e privado publicando textos em jornais, na época em que a imprensa nacional ainda engatinhava. Nísia também dirigiu um colégio para moças no Rio de Janeiro e escreveu livros em defesa dos direitos das mulheres, dos índios e dos escravos.

Extraímos aqui um trecho do seu livro Opúsculo humanitário.