É um apartamento muito limpo. Sua sala parece ter sido transplantada de um showroom de alguma loja de móveis, tudo muito arrumado e combinando. Um arranjo de flores artificiais em cima de longa mesa de jantar, com seis cadeiras. Um lustre modesto, mas ajeitado, adorna o conjunto. Tudo em tons de marrom e as paredes num bege claro. A impressão de quem olha é que ninguém usa aquele ambiente.
O quarto tem um móvel planejado que cobre duas paredes em L e termina embaixo da janela. A cama fica no canto inverso. Tudo muito limpo, muito arrumado, muito silencioso, como se ninguém nunca passasse por ali.
É lá que ela vive. Sozinha, praticamente, a filha aparece raramente e apenas para dormir. Sai muito pouco de casa, para ir ao mercado, para ir à missa, para ir à comunhão espírita. Como ela diz, não tem uma religião, mas acredita em muitas coisas. Assim, não frequenta assiduamente nenhum lugar. Não faz exercícios além de pequenas caminhadas eventuais.
Como não tem nenhum interesse específico e uma casa impecável, vive tensa, esperando que algo aconteça. Vê TV com o som bem baixinho, ela diz que é para não incomodar os vizinhos. Sua intolerância ao ruído vem de seus nervos abalados, da ausência completa de interação com o mundo.
Tudo seria perfeito, se seu universo reservado, asseptico e silencioso não ficasse cravado num prédio de pequenos apartamentos povoados principalmente por pessoas que moram sozinhas. Vidas que recebem outras vidas em suas casas, que riem, ouvem música, andam, cozinham, brigam, correm, pulam. Fazem ruídos.
Ela não aguenta, tudo a angustia. “Eles ouvem uma música bem baixinha”, ela falou outro dia com a vizinha. Crianças caminhando no corredor são o fim. “A partir das dez as pessoas têm que entender que elas têm que andar descalças dentro de casa para não incomodar ninguém”, o vizinho ouviu. O sexo barulhento de um casal que acabou de se conhecer é capaz de a deixar em crise por uma semana.
Outro dia alguém a ouviu gritar “aaaaai, meu deeeeeeeeus”, um desespero que veio de algum ruído feliz que vinha de outro apartamento. Gritos que são frequentes, aliás.
Quando está no térreo do prédio, ela para um morador ou outro para comentar que tem quase oitenta anos e relatar a lista de doenças que a assolam, mas que estão controladas porque ela se cuida. Cada um a ouve, alguns com carinho, outros apenas com paciência, outros nem isso, mas sempre chega um momento em que sua voz trêmula começa a tirar a paz da pessoa, que passa a evitá-la e seu desespero passa a se focar em outra. Todos ouvem, respeitam, mas continuam vivendo, isso a enlouquece. “Como é possível não ficarem em total silêncio, não sabem viver em prédio”, ela diz.
Ninguém entende a profundidade da sua dor, nem ela, porque esse silêncio que ela busca no mundo nunca trará a paz que ela espera.
Ótimo texto, como sempre! Belíssima crônica! Vou te dizer que você leva jeito, hein! Interessante a associação do barulho com a vida…
Nossa, maravilhoso! Me lembrou as coisas do Tchékhov (“O homem no estojo” e “Um caso clínico”) e também algumas coisas dos meus “Entulhos”. Muito bom, muito bom mesmo. Adorei. Quero, depois, fazer comentários específicos.
É totalmente patética essa idéia formada que algumas pessoas tem de se isolar no seu mundinho,simplesmente porque acha que aquilo é a coisa certa. Isso apénas as tornam insignificantes aos olhos dos outros ou seja trazem elas proprias a chatisse e depressão para si! PURA IDIOTIÇE!!!😒