O lugar de um anjo

por Mauro Castro*

Todos os domingos um táxi estaciona em frente a uma velha e tradicional igreja de Porto Alegre. O taxista entra sem tocar na água benta, sem fazer o sinal da cruz – ele não tem fé. O taxista apenas fica em pé, no fundo da igreja. Ele não acompanha a missa, não ouve o que o padre fala, apenas fica olhando para o altar. Todos os domingos.

Foi há muito tempo. O taxista levava uma mulher humilde que estava atrasada para o serviço. Ela estava indo fazer a faxina semanal em uma grande igreja da zona leste da capital. Durante a corrida, os dois entabularam uma conversa, que acabou em namoro. Apesar de casado, o taxista acabou entregando-se à paixão.

Depois de alguns meses de uma relação ardente, a mulher engravidou. O taxista, em desespero, pediu que ela abortasse – não queria prejudicar seu casamento com um filho bastardo. Ela, porém, resistiu e levou a gravidez adiante.

Durante toda a gestação, a mulher continuou fazendo suas faxinas, sobretudo na igreja, da qual conhecia cada centímetro, onde já trabalhava havia muitos anos. O taxista, vendo a fibra da mulher, conformou-se com a ideia de um filho fora do casamento. Sentia-se culpado por ter pensado no aborto. No conforto de sua casa, pensava na mulher pobre, que esperava por um filho seu em um barraco de madeira.

Sem ter a quem recorrer, a mulher teve o filho sozinha, em casa. A criança veio ao mundo morta.

Quando o taxista a encontrou, dias depois, ela já tinha dado jeito em tudo. Já estava trabalhando, que era sua sina. Já estava ariando o assoalho da velha igreja. Assoalho, aliás, que tinha duas tábuas soltas embaixo do altar, que só ela conhecia. Foi lá que ela depositou a criança morta, depois de enrolá-la cuidadosamente em um plástico, para que não sentissem o cheiro.

Todo o domingo, com o olhar fixo naquele altar, o taxista pensa que não há lugar melhor para um anjo.

.

Mauro Castro é taxista em Porto Alegre e é conhecido na internet por seu blog Taxitramas, em que publica crônicas sobre o cotidiano do seu ofício. Entrevistamos ele por aqui há alguns anos. Publicamos aqui um dos textos do seu novo livro Taxitramas volume 2, que acaba de ser lançado.