Joana

por Roberta AR 

Hoje, vi a Joana depois de muito tempo. Ela estava com cabelo curto, uma clutch preta com detalhes prateados e uma bota de couro muito elegante, também preta, por baixo de sua longa saia da mesma cor. Apesar de ser a mesma pessoa, achei diferente da figura que sempre vi pelas quadras da Asa Sul. A sequência de eventos porque passou podem ser uma boa justificativa para isso.

Conheci Joana não muito tempo depois de chegar em Brasília. Moradora de rua, sempre andava pelas quadras próximas à que eu moro (e às que morei antes, nunca saí do perímetro entre a cinco e a oito), com sua sacola repleta de papéis e livros. Uma andarilha, como na carta sem número do tarô.

Seus cabelos longos, brancos e cacheados, impecáveis, me intrigavam muito, porque os meus cachinhos não ficam bem em qualquer circunstância e ela vivia sempre tão arrumada mesmo morando na rua, ninguém diria que vivia em situação tão adversa.

Conversamos algumas vezes, rapidamente. Ela pedia coisas para comer de maneira muito direta e delicada. “Você poderia comprar este pacote de bolachas para mim?”, disse uma vez no supermercado. Outra vez pediu um real para comprar algo, eu só tinha dois e ela não quis aceitar.

Mas também tinha seus momentos de mau humor. Dificilmente aceitava comida oferecida sem ter pedido e, boa parte das vezes, acabava descartando a comida mesmo na frente de quem havia dado, não se via obrigada a aceitar qualquer coisa. Isso sempre me causou admiração, a manutenção da própria dignidade diante do nada que ela tinha de estrutura. Não é porque se virou um pária, um à margem, que se perdeu o desejo por coisas gostosas.

O nome não soube por ela, mas por uma outra pessoa que também a conhecia e acabou por me contar parte da sua história. Ela teria sido professora de piano. Veio da Região dos Lagos, no Rio, provavelmente de Rio das Ostras, me disse alguém que acompanha mais de perto suas andanças. Teria vindo para Brasília atrás de um grande amor, mas teve uma grande desilusão e passou a viver na rua. Como isso aconteceu, ninguém sabe ao certo.

Não era raro eu passar de ônibus e vê-la escrevendo sentada em um meio-fio, ou no meio do gramado das quadras. “Um romance policial, esses meus livros são de pesquisa”, ela disse uma vez.

Ela dizia a quem conhecia que tinha estudado na Escola de Música de Brasília, mas, ao verificar a informação, descobri que isso nunca aconteceu. Ela sempre estava por ali, mas seus estudos musicais foram um passado que ela inventou para si mesma. Com o tempo, desisti de saber exatamente como as coisas aconteceram na vida dela, principalmente a partir do que ela conta, e passei a imaginar com ela uma nova história.

Sempre me deu uma grande sensação de liberdade ver, por meio dela, que é possível refazer um passado inteiro e andar por aí desprendida do mundo, mesmo numa atitude de profundo desespero. É preciso muita força para isso, para estar fora do ritmo do mundo e fazer parte dele ao mesmo tempo.

Joana sempre foi muito serena no seu andar solene. Há alguns anos, aconteceu um episódio muito estranho que colocou essa minha visão em cheque. Do nada, passou a gritar coisas sem sentido pelas quadras e a andar desnorteada pelo meio das vias.

Um dia, eu estava chegando de viagem e, no aeroporto, falei para o taxista qual era meu endereço. Ele me disse que tinha uma senhora enlouquecida andando nua pela rua. “Sim, é uma senhora de cabelos brancos longos”, respondeu quando a descrevi. Uma tristeza enorme.

Cheguei na quadra e ela estava andando nua, seguida por vários moradores da quadra com roupas e lençóis pedindo para se cobrir. Uma experiência comunitária que eu nunca tinha visto em Brasília, motivada por ela, que ignorou por completo os apelos de todos.

Alguém me disse depois que havia sido recolhida por uma ambulância e passamos muito tempo sem vê-la de novo. Ela já não era mais a mesma quando voltou.

Seus pedidos ao abordar a gente na rua eram cada vez mais confusos. Uma vez me pediu um real e logo em seguida me trouxe de volta, porque o meu dinheiro tinha feito ela perder o resto que tinha guardado e não queria mais esse dinheiro “amaldiçoado”.

Algum tempo depois do seu surto, fiquei sabendo que tinha sido atropelada na L2 Sul. As notícias eram bastante desencontradas, mas ela teria sido internada no Hospital de Base. Pouco depois, a notícia de sua morte se espalhou pela internet. Uma comoção. Pessoas tentando descobrir mais informações, outras divulgando como certeza. Não tínhamos mais esperança de vê-la de novo.

Ninguém esperava nova reviravolta nessa história. Perto do natal desse ano, recebo uma mensagem no celular: “acabo de encontrar com a Joana, ela está de cabelos curtos e VIVA!”.

Inacreditável seu poder de se reinventar. Hoje, foi com essa nova Joana que me encontrei. Mais um alguém disse que voltou a viver com a família aqui na cidade. Ninguém nunca soube que ela tivesse parentes por aqui, ou a viu andando por aí com alguém mais próximo. Mais uma história entre as tantas reais e inventadas.

Joana morreu e voltou dos mortos, se não literalmente, pelo menos no nosso imaginário. Uma pessoa livre para recontar sua vida (e sua morte) mil vezes.

(texto escrito em abril de 2013 e publicado no Jornal Pimba #1)