
Oi, gente… Meu nome é André (“oooooooi, André”). Meu nome é André e eu tenho um problema. Reconheço. (Cabeças acenam condescendentemente). Eu… Eu… (o psicólogo chega mais perto e põe a mão no meu ombro, encorajando. “É difícil mesmo!”) Eu sou viciado em jogos de tabuleiro. Reconheço que o problema remonta à minha infância. Desde cedo eu me envolvi com versões mais leves… Eu era jovem… Inconsequente… Naquele tempo, ‘tudo não passava de uma brincadeira’, né? Lembro do quanto joguei Ludo durante minhas viagens de férias. Ou então, pouco mais tarde, o Banco Imobiliário. E o Explosão? Lembra? Alguém lembra? A gente montava a ponte para o explorador passar e o dado definia se literalmente explodiríamos (fisicamente) o nosso caminho ou o dos adversários. Lembra? (A mão do dado chega a tremer. “Foco, André… Foco”, diz o analista).
Consegui me afastar por um tempo… Veio o ensino médio e a faculdade. Só um tanto mais tarde trombei com o mais do que tradicional Reversi. O intervalo de tempo desde a última jogatina nublou minha percepção. Só um tequinho. Não vai fazer mal. A mecânica era simples e instigante. Uma peça colocada convertia todas as outras da sua linha ou coluna para sua cor desde que na outra ponta tivesse outra com a sua correspondente. Uma branca transformava todas as pretas que estivessem entre outra branca. Dá para entender? Um tabuleiro físico mudava na sua frente, sem um sistema eletrônico, a cor da porra da ficha. Era… era mágico entende? Olhar aquilo. E… nunca estava sozinho. Do outro lado da mesa tinha uma pessoa. E a gente interagia sabe? Por causa das peças, sabe? (As cabeças voltam a acenar. Eles já estiveram onde estive)
E aí… bom… mais um salto no tempo e estamos no final de 2013. Já tinha ouvido falar de um novo título que estava chegando no Brasil. Coisa fina, eles diziam. Não pega nada, eles diziam. Olha só… os zumbis andam SOZINHOS no tabuleiro. Eles te perseguem. O sistema controla como a horda de mortos-vivos vai perseguir os sobreviventes. (O ar se torna denso, pegajoso… uns engolem seco… consigo ver o companheiro ao lado contando nos dedos quantas ações têm no seu turno… ‘andar, abrir a porta e atirar’, murmura. Ele acha que ninguém pode escutar. Eu escuto. E mentalmente repreendo. ‘Não, idiota, não atire, volte uma casa e se defenda. Você só tem uma panela’). Eu… Eu… Foi então que eu… (o psicólogo olha nos meus olhos) … que eu comprei Zombicide (a moça ao meu lado não segura o choro e soluça).
Depois… bem… esse foi meu primeiro passo pra perda do controle. Eu não queria só experimentá-lo. Queria compartilhá-lo. Comecei a envolver familiares e amigos. (Aquela mulher ao meu lado já não mais me escuta. Está com o rosto enterrado no lenço. As lágrimas vertem). Uma busca na internet e descubro que dava para incrementar aquela experiência. Eram vendidos mais módulos do tabuleiro para montar meu próprio cenário. Mais zumbis. E… Oh, deus… Cachorros companheiros que nos auxiliariam na aventura. Cedi aos dois últimos. Mas percebi o perigo do descontrole. O que não vi, foi a ameaça vindo do outro lado. Não vou gastar com expansões… mas… mas… com… (agora é a minha vez de sentir o nó na garganta) com… outros títulos.
Na época, meu irmão viajava para o exterior. Era fácil passar pela alfândega com algumas caixas nas malas. Foi então que veio King of Tokyo e Pandemic. O primeiro era uma batalha de monstros pela fama. Os dados revelavam ataques, acúmulo de energia para compra de poderes, ganho de vida e/ou de pontos de fama. O outro acredito que tenha sido a primeira pá de terra sobre o caixão da minha sanidade. O tabuleiro trazia um mapa mundi por onde doenças se espalhavam. Com um interessante modo de voltar a embaralhar cartas, cidades contaminadas tinham novos surtos. Era nosso dever a contenção dos vírus e a descoberta dos remédios. Nunca salvamos a população mundial. Nunca. Aqueles cubos doentios. Eu tentei. Nós tentamos. Mas eles continuavam vindo. E vindo. (Minhas forças começam a se esvair, mas eu tenho que tirar isso do meu peito).
Aqueles mundos eram fascinantes demais. Ao redor deles… um “círculo mágico”. Aprendi o termo com outros… como eu. Ao redor do tabuleiro, a realidade se distorce e passamos a viver em 2D, com aquelas regras. Com aquelas leis. Cada caixa, um universo diferente, entende? Hoje existem 78 mil jogos à venda. Entende a grandiosidade disso? Depois de Pandemic, experimentei outros… um total de 20. Todos meus. Meus, entende? Eles… entraram na minha mente e reacenderam o que há de pior em mim: minha faceta de colecionador. Não bastava mais experimentar um e passar para o outro. Não! Muitos ao meu lado me ofertaram um tapinha. Mas eu preciso. Pra mim. No meu armário. Meu. Hoje mesmo um amigo me taxou: CONSUMISTA!
Não sei quando surgirá o termo JOGADOROFOBIA. Um dia isso vai ser crime. Eu sei. Eu sofro. Nos meus surtos de nóia, minha mão treme. (Coincidência ou não, a mão de quem está à minha frente aperta algo vazio dentro dela e mexe pornograficamente… para cima e para baixo. Para frente e para trás.) Tenho que pegar aqueles cubos pintadinhos. Tenho que lançar à mesa. Mas eu tô no trabalho, entende? Em voz baixa, pergunto para um amigo: “Ei… psiu… ei… você… é… hum… você tem dado em casa?” Eles riem. Sou motivo de piada. (Eu cedo. Eu choro… não consigo mais continuar… o psicólogo assume)
Obrigado, André. Bem, hoje – né? – aprendemos que não estamos sozinhos, okay? O grupo tem aumentado nos últimos anos, né? E, tipo, mais pessoas têm sido levadas ao vício, okay? A oferta – né? – nunca foi tão grande. E precisamos estar vigilantes, okay? As editoras estão lançando – né? – muito material antigo. Clássico. E… né? Vocês viram que vai sair Agricola, né? Aquele em que controla a produção de uma pequena fazenda? É… E The Gallerist, que te coloca nos negócios de comercialização de obras de arte, né? Viram aqueles tokens? Até tripezinho para os pequeninos quadros tem. E Stone Age? Viu Stone Age? Alguém já jogou Stone Age? Ei, você trouxe Coup aí? Não? Survive, tem Survive? E dado. Tem dado em casa?
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Brincadeiras à parte, para conhecer mais sobre jogos de tabuleiro, veja:
* Minha matéria na Agitação
* Incríveis canais no YouTube, como Jack Explicador, Jogando Off Line e os vídeos de Will Wheaton.