O fracasso em meio ao caos

por Roberta AR

Sonhei que estava no cruzamento de uma grande avenida, um lugar que me foi tão familiar por tanto tempo, mas que não vou há anos. Perguntei para quem estava comigo, uma amiga que se distanciou, coisas da vida, se não tinha problema eu dar um pulinho por lá no meio do isolamento. “Está cheia de gente passeando, não tem problema”. Acordei assustada.

Este ar de normalidade no meio do absurdo é algo que sempre me assusta, não é um sentimento novo. As pessoas naturalizam as piores coisas de um jeito quase sereno, digo quase porque esta serenidade é mantida artificialmente com alguma compulsão, remédios controlados ou drogas. Os que não naturalizam, viram esses seres estranhos inadaptados que precisam ser consertados. 

Eu tenho sido essa pessoa quebrada faz uns anos já. Em isolamento, sem conseguir ser funcional nas condições que o mundo quer. Não sou mais produtiva, pois não gero riqueza. Estou aqui dedicada a manter uma criança mentalmente, emocionalmente e fisicamente saudável no meio da violência emocional e patrimonial que vem de todo o lado. E minha energia tem sido toda consumida por isso e pela feridas emocionais de uma vida de abandonos. Esteja materialmente vulnerável e se veja ser tratada como incapaz, com condescendência e até tentarem tirar seu poder familiar. 

É difícil e pesado viver neste mundo. Para todo mundo. Este é um mundo violento e nós, pobres, dividimos entres nós metade da riqueza do planeta, a outra metade está na mão dos 1%. Esse valor deve ter aumentado depois que esta marca foi atingida há quatro anos (pros mais ricos). E são esses 1% que dizem quem vai mandar em cada canto do mundo, ou você acha que foi o porteiro com seu voto que escolheu este presidente?

Acho interessante como se gasta tempo falando mal do pobre de direita e não se fala nunca destes ultra-ricos. Será que é porque as fundações deles dão uns troco para as artes, bancam políticos “de esquerda”? Usam até os mortos desta epidemia para chamar pobres de burros: “a maioria desta cidade votou em…”. Merecemos morrer por isso. Mas falar da fundação lá do cara mais rico do país, que tem aquela fast food das propagandas descoladas, junto com aquele apresentador que quer ser presidente nem pensar. E eles se juntaram para eleger muita gente no parlamento. Normal, né? Dinheiro bem gasto que vai nos beneficiar… Aqui eu acordo assustada, de novo, mas desta vez não estava nem dormindo. 

Precisamos buscar o sucesso. Pensar em sucesso traz o sucesso até você. Mentalize a riqueza, o que você quer ter, onde você quer estar. Mesmo sabendo que tem que dividir metade da riqueza do mundo com quase sete bilhões de pessoas, porque a outra metade tá na mão de umas duas mil. Alguém sugeriu que eu monte meu negócio agora. Acordo já acordada de novo. Mas assustada. “Fulano doou um milhão para pesquisa do corona vírus”. Dinheiro do papel higiênico, né? Cês me poupem. 

Eu vejo muita gente sem conseguir se encaixar neste mundo. Estou assim faz pouco tempo, focando minha energia em sobrevivência primária, mas sinto essa dor de todos como a minha. Pessoas que sentem o peso de ter que levantar de manhã para exercer atividades absolutamente inúteis e dispensáveis no meio de gente abusiva e que se dá um valor maior do que lhe é de direito. Nunca tinha chegado neste estado em que o peso é maior que a minha força, mas sempre tive que lidar com ele. E ainda temos que ouvir que isto é fracasso.

O sucesso do 1% é o total desprezo ao resto do planeta. Estamos neste caos sanitário porque tem gente sugando nossa existência (nossa como parte da natureza, somos todos uma coisa só) e a transformando em moeda corrente. Lidar com o fracasso não pode ser um problema, neste contexto. Somos todos fracassados, nesta perspectiva. O fato de alguém ter um salário um pouco maior não o torna uma pessoa de sucesso, porque o salário pode sumir a qualquer momento. Aquela empresa de sucesso também não sobreviveu agora.

Hoje, me sinto reconectada ao mundo. A minha dor agora tem legitimidade. O absurdo está bem visível, para quem quiser enxergar. Não é uma sensação boa, este pertencimento. Mas me tira do lugar da louca que se nega a cair na real. O que é real?

Ontem, li um artigo, que tava numa fila pra ler faz tempo (você está sendo produtivo na pandemia? eu não). Ele falava de moda, mas veja este trecho: “O tempo urge. Defendo a cura pelo respeito ao coletivo, às pessoas. Acredito que vamos precisar nos preparar para organizar uma nova ordem feita de variações mínimas (…) com respeito irrestrito ao planeta. Será preciso o indivíduo desprender-se das normas antigas e apreciar cada vez mais o coletivo, para aí sim conseguir afirmar um gosto mais pessoal.” (o texto do Jackson Araújo está completo aqui

Ele fala de coletivo, mas não como estes grupos contemporâneos que pretendem ser vanguarda, mas têm essa cara de empreendedorismo meritocrático. Coletivo como estar junto, de verdade. Precisamos nos ver a partir do outro, da troca, não do julgamento. E eu pensei aqui nas tantas vezes que estive com amigues e até em coletivos, mais de um, pessoas incapazes de pensar a troca de potencialidades sem isso virar recurso financeiro. Pessoas que não aceitam que você faça algo que é sua especialidade sem pagar por isso, provavelmente por não querer “ficar devendo”. Ou que acha que qualquer coisa que ela faça tem preço. A impensável, para elas, gratuidade nos gestos. Eu faço parte de um núcleo da Comunidade que Sustenta a Agricultura (saiba mais o que é clicando aqui) e um dos lemas desse grupo é substituição da “cultura do preço pela cultura do apreço”. Agora é tempo de pensarmos estas relações sociais. Isso é muito sério.

Vejo iniciativas como Artistas em Quarentena, da Lila Cruz, que pensa concreto e pontual, neste momento difícil, para citar uma de um grupo com que tenho trabalhado nos últimos anos. Como esta, temos milhares de ações em todo o país, indígenas, periferia, catadores, artesãos, quilombolas, estão todos se articulando para sobreviver apesar de. Mas, mais do que doar, precisamos criar nossas próprias redes de apoio. Material e emocional. Gente com a qual você possa estar nas vacas gordas e vacas magras te olhando do mesmo jeito, com respeito, amor e carinho. Que a gratuidade do gesto seja recíproca. Que o cuidado seja sincero e te deixe tranquila por ter um colo no meio do caos. Precisamos sobreviver para o depois.

Está difícil, mas eu tenho o sonho com um abraço apertado na amiga querida que nunca vi pessoalmente. Tenho a mensagem de quem sempre esteve aqui do meu lado quando eu quebrei de verdade. O carinho de quem me ajuda a descobrir quem eu sou. O amigo que divide minhas iniciativas de conteúdo gratuito “creative commons”. O companheiro que está aqui, mesmo sendo tudo tão difícil. A criança que me ama. Somos coletivo. Comunidade, porque acho mais bonito.