Alma não tem cor: uma falsa medida do homem

por Carla Lisboa*

Passadas as “comemorações” sobre o dia em que foi assinada a Lei Áurea, que extingue a escravidão no país (mas não a mentalidade escravista), tudo volta ao “normal”: violência e/ou discriminação racial, racismo, silenciamento, necropolítica… você escolhe, o repertório é vasto. Tudo acaba em extermínio, em invisibilidade social, em uma memória apagada, numa denúncia deslegitimada.

Tá, mas… E daí?

O historiador francês Pierre Norah, propôs um debate importante sobre memória, por ocasião do bicentenário da Revolução Francesa, em 1989, mas também sobre o papel dos arquivos, datas comemorativas, monumentos e do patrimônio do país. O que deve ser preservado, ou esquecido? De qual passado falamos? Quais memórias são dignas de serem levadas adiante? Entre outras questões (e incômodos) levantados por Norah, está a memória como espaço de DISPUTA.

Tá, mas… E daí?

Daí que os debates sobre a desigualdade e a discriminação racial têm data certa no calendário, como se só morressem pretas e pretos no 13 de maio ou no 20 de novembro… É como se afrodescendentes só existissem a partir da perspectiva da miséria, da exclusão social e da violência, e essas duas datas servissem para um mea culpa, mea maxima culpa, mas que, na prática, não muda nada. Mas enfim, Pierre Norah está aí para explicar sobre esse processo de apagamento de memória e como ele acontece. E, apesar de me basear nas reflexões de um historiador europeu e branco, ele ajuda a organizar minhas reflexões sobre o assunto. Em tempo: Isso não quer dizer que não haja outros intelectuais falando sobre isso, mas que é uma escolha minha para falar sobre o tema partir das datas comemorativas, criadas por brancos. É uma discussão longa, válida, necessária, mas que pretendo fazer em outro momento, abordando especificamente intelectuais negros.

Todo lugar de memória é, antes de tudo, um espaço de disputa, não de concessão. Assim como a Lei Áurea não foi uma concessão, mas resultado de uma série de disputas em diversos níveis, seja no aspecto político, econômico e, claro, o social. Para que um grupo social seja lembrado é preciso silenciar o outro, ou “conceder” uma data, monumento, homenagem, para compensar esse silenciamento. Explico: não é uma data para reconhecimento das lutas por liberdade e reconhecimento da humanidade de milhões de pessoas escravizadas, muito menos de seus descendentes. Deveria ser, mas não é. Se houvesse, realmente, uma vontade de reconhecer historicamente a miséria vivida cotidianamente por essas pessoas, hoje, não seria necessário criar essas datas “de reflexão”. Sabe por quê? É simples: porque essas pessoas teriam sido integradas à sociedade depois do glorioso 13 de maio de 1888. Mas quem quer reconhecer que pisou na bola e construiu seu patrimônio financeiro à custa da exploração do trabalho alheio, não é mesmo?

Sem políticas de inserção social, sem acesso à escola e ao aprendizado de outros ofícios (além daqueles que exerceram enquanto escravizados), sem moradia, não haveria muitas alternativas além do alcoolismo, da mendicância, da fome e do subemprego. E nem venha me dizer que alguns conseguiram subir na vida, porque essa exceção só confirma a regra miserável que permanece ainda hoje. E digo mais: estes poucos que “subiram na vida” ou que não são miseráveis, só conseguiram graças ao ocultamento de sua identidade e ancestralidade africana. Só conseguiram o passaporte do sucesso porque se submeteram a uma série de códigos (brancos) de aceitação: modo de vestir, de falar, de se comportar, enfim, se embranquecer como é possível. Uma violência tamanha, que nenhum branco é capaz de imaginar, muito menos de sentir.

Mas, antes que eu me perca, quero evidenciar alguns pontos “nebulosos” sobre o racismo nosso de cada dia. Porque, sim, apesar de não ser branca, eu também cometo erros e tento aprender com eles. É uma luta desgastante, injusta e cheia de armadilhas e devemos estar preparados para elas. É preciso estar atento e forte, já alertava Gal, sob os ventos tropicalistas. E o mundo está cheio de armadilhas, acredite. A primeira delas, quiçá a mais frequente e que me deixa profundamente irritada (e até já adoeci por isso) é o famigerado “Somos todos iguais”. Iguais!? ONDE, alguém me explica?

Agora, neste exato momento de isolamento social, nem todos têm o privilégio de ter uma casa para se isolar, tampouco uma torneira para lavar as mãos. Não deveria ser assim, óbvio que não. Ter empatia e compaixão são indicadores da nobreza das pessoas, mas se esses sentimentos não levam a uma ação efetiva, de pouca valia será a indignação com o racismo. Nossa humanidade nos faz iguais em generosidade, respeito e, até mesmo, na fragilidade com relação às doenças, a solidão e a morte, mas como acreditar nisso com tanta gente dizimada, deslegitimada, desacreditada, calada, presa sem saber por quê? Como acreditar nisso se, quando estamos dizendo que não somos socialmente iguais, embora devêssemos ser, insistem na ideia de vitimismo? Quando vão entender que existe uma história do CONTINENTE AFRICANO anterior à escravidão e que a diáspora negra para o Brasil foi e é cruel porque tira, HOJE, direitos constitucionais dos descendentes de escravizados, porque não têm acesso a eles, como quaisquer outros cidadãos? Como essas pessoas vão ter uma formação e conseguir “ser alguém na vida”, se não conseguem se manter frequentando a escola? Como essas crianças e adolescentes vão se sentir acolhidos e aceitos com TODAS as limitações, traumas e violências sofridas dentro e fora de casa (quando há uma), quando tudo que recebem é julgamento? Se ouvem, desde a mais tenra idade, que são caso perdido, preguiçosos, acomodados, vagabundos?

Somos todos iguais, mesmo? Iguais a quem?

E seu eu te disser que, essa frase contém uma crueldade imensa?

Não somos iguais fisicamente, embora milhares de pessoas maltratem os cabelos para que pareçam lisos; não somos iguais espiritualmente porque muitos de nós têm um sistema de crenças diferente do cristianismo e que cotidianamente é vilipendiado, desprezado, dilapidado e destruído em nome de um Deus (branco) e salvador; não somos iguais filosoficamente porque pensamos o mundo diferentemente, com ênfase no coletivo e em respeito à ancestralidade; Não somos iguais porque ubuntu é muito mais sofisticado, complexo e profundo do que um sistema operacional de computador. Vou ficar por aqui, porque tenho exemplos e cansaço demais para esse espaço.

Numa sociedade extremamente violenta como a brasileira, é curioso observar esse fenômeno: a (falsa) crença de que somos iguais e suas variantes, tais como raça humana, não vejo cor, preto de alma branca, branco de alma negra, ou outra mais espiritual: alma não tem cor. Esta última soa mais cínica aos meus ouvidos. Considerando que há pouco menos de 150 anos, negros não tinham alma, tampouco eram considerados gente, a menos que fossem batizados com um nome cristão, obviamente… isso dói ouvir, sabe? Há quem argumente que se deva superar esse triste passado e buscar uma unidade espiritual, uma unidade branca e cristã, que fique bem entendido.

Então, eu te pergunto: por que deveríamos ser iguais, pasteurizados como um enorme pote de iogurte? Por que AINDA não somos aceitos por ser quem somos, como somos e queremos ser e ainda não podemos ser em plenitude e com dignidade?

Porque existe uma maioria que não quer assumir que tem privilégios. Sim, ser branco no Brasil é privilégio, não porque eu quero, mas porque vivemos num mundo em que aparência é importante. Veja, o código de “normalidade” é ocidental e branco. Não se trata de culpa, mas de responsabilidade social. Dizem que os negros e afrodescendentes não têm educação, são agressivos, irascíveis, histéricos, encrenqueiros, indisciplinados, se vitimizam… Você branco, cristão etc., já questionou sobre o porquê desse comportamento? Se não, deveria. Não estou falando em caridade, mas em fazer autocrítica para ser capaz de aceitar valores, estéticas e formas de expressão artística e religiosa diferentes das suas, para que outras pessoas tenham acesso às oportunidades que você tem. Começa por aí… O primeiro passo é reconhecer os privilégios.

Dói, né? Imagina quando negam o direto de se manifestar sobre a discriminação e violência vividas por causa da cor da pele… Quando um afro-brasileiro diz que determinada postura, fala, brincadeira é racista, não é opinião, nem vitimismo. É uma afirmação que é imediatamente deslegitimada com o mais puro achismo. Racismo não é sobre (sua) opinião, é sobre sua postura com quem é diferente de você, mesmo que você não perceba. Quando alguém lhe disser “isto é racismo”, aceite humildemente e se emende.

Outra coisa: quando acreditamos na ideia de “dar voz às minorias”, na verdade, estamos dizendo que essas pessoas não são capazes de falar por elas mesmas de suas mágoas, frustrações e injustiças sofridas. E isso é silenciá-las mais uma vez. Olha aí, Pierre Norah acenando para mostrar o apagamento simbólico e histórico novamente! Não basta homenagear a cultura negra, exaltar sua beleza e sabedoria ancestral é preciso que ela exista e seja respeitada per se, sem ser esvaziada de significados, tampouco tornado produto. Essa luta é multifacetada e cheia de armadilhas, como já disse. É política, econômica, religiosa, social, semântica, mas também está presente no nível dos afetos, nos ritos cheio de significado e riqueza, nas memórias, histórias e seus múltiplos sentidos. É cruel, porque inviabiliza o discurso de quem mostra o racismo que estrutura nossa sociedade e as redes de relações. É tão grave que foi tornada crime, apesar de banal.

É aqui que nosso compromisso como cidadão deve se reafirmar, principalmente em tempos de terras planas, pistolas e “Zumbi dos Palmares dono de escravos” e outros negacionismos perigosos, do passado e do presente. Esse compromisso, nada fácil de ser mantido, pouco tem a ver com conceder algo que já está previsto na Constituição de 1988. Diz mais sobre como, nas diferenças, todos tenham acesso às mesmas oportunidades e direitos que você tem, desde que nasceu, e muitos nem sabem que existe. É sobre respeitar o ser humano, suas diferenças e, acima de tudo, agir com justiça. Só assim, a diversidade de identidades, credos, cores e crenças farão parte de ser brasileiro verdadeiramente.

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* Carla Lisboa é mestre e doutora em História Social pela Unesp/Assis e professora convidada do Centro Universitário Sagrado Coração. Capricorniana, corinthiana (sem muita convicção), de “de esquerda” e voltou a tricotar na quarentena.