Respeita a mulher cansada

por Roberta AR

Acho que peguei COVID em abril. Nunca testei para confirmar por motivos de os sintomas passaram e não queria me expor no posto de saúde. Foram dois dias de uma dor de cabeça que nunca senti daquele jeito na vida, nem antes, nem depois. E uma fadiga colossal. Eu só dormia. Naqueles dias, dor de cabeça nem era sintoma catalogado, mas fiquei com medo, muito. Agora o cansaço, esse podia até ser sintoma (hoje, sabe-se que é e um dos mais frequentes), só que ele tem me acompanhado em suas variáveis intensas faz uns anos.

Ser mulher é ser educada para estar eternamente disposta. Mulher tem que “caçar o que fazer”. “Vagabunda” é a mulher que não faz o que a sociedade exige dela, que faz existir um tempo livre que não seja para o trabalho doméstico. E esse papel é ensinado desde muito jovenzinha. Eu fui criada como força de trabalho doméstico e foi uma grande celeuma familiar eu querer me tornar cientista, algo que nunca se concretizou, porque eu sou mulher e nasci pobre e na favela. Mas isto é conversa para outro dia.

Soma-se a isso a carga mental, que é aquele trabalho de administração da vida que também é colocado culturalmente nas costas das mulheres. O que passa pela lista de compras da casa, vai pelo “não pediu para lavar a louça/roupa” que tá lá suja e segue por inúmeros detalhes grandes (como data dos boletos) e pequenos (como aquela cópia da chave). 

Daí tem a  maternidade, que já começa com um intensivão do cansaço chamado puerpério. Dormir em intervalos de meia hora foi das experiências mais psicodélicas da vida. Esse intervalo foi aumentando com o tempo, mas nunca mais dormi como antes. Foram uns dois ou três anos até a noite ser completa, mas o eterno estado de alerta nunca passou, qualquer gemidinho, eu desperto. Uma sensação de sono acumulado faz anos. E tem os cuidados com a cria, a carga mental que se soma àquela outra, a disponibilidade emocional…

Numa situação de exaustão, ou de recusa mesmo a assumir esse papel, você se rebela. E sofre de imediato as consequências, que podem ser a violência física, numa situação extrema, mas bastante comum, ou a violência psicológica, que é absolutamente banalizada e praticada, também, por pessoas que se dizem libertárias e desconstruídas, mas que certamente não estão atentas ao que fazem no dia a dia. 

Quem é mulher, querendo ou não se encaixar nesses padrões, inevitavelmente já foi constrangida por não estar fazendo o suficiente. “Porque a mulher, do sexo feminino”,  eu ouvi outro dia de uma parente ancestral do meu filho, que falava bem alto para que eu ouvisse. O tom rancoroso, amargo mesmo, dessas mulheres que têm uma vida absolutamente frustrada tentando seguir os requisitos sociais para ser “uma mulher direita”, num sacrifício que nunca é recompensado. Essas mulheres acabam por se tornar fiscais sociais de outras mulheres num lance de “transferir o esporro” e ter seus cinco minutos de poder abusador nas mãos. Muitas vezes isso é feito de forma meio inconsciente, mas na maior parte das vezes existe o sadismo de quem sofre e quer dar algum sentido a esse sofrimento, mas que não pode ser transformado em revolta (mas deveria).

O controle do corpo, do ócio, do desejo, da potencialidade no ambiente familiar pode ser absolutamente brutal. A pesquisadora Geni Nuñez se dedica a falar sobre nossas relações sociais moldadas pelo pensamento colonial e tem uma percepção bastante pontual dessa parentalidade violenta: “A mensagem que as famílias passam muitas vezes é: quando você exerce sua autonomia, de modo saudável, isso me faz sofrer e se me faz sofrer e você sabe disso, então você é um mau filho, ingrato. Além da ameaça (por vezes concretizada) de retirada de moradia, alimentação, também há outra tão impactante quanto: a retirada do amor. Que a gente possa se fortalecer para cada vez mais reduzir os danos deste amor familiar abusivo, que só promete permanência se a coerção for concretizada. E que mais tarde a gente tenha forças para não repetir estes ciclos com as pessoas que amamos.” 

Aos cansaços todos impostos e com os quais temos que lidar, ainda tem esse da luta sem fim de fincar o pé e não baixar a cabeça, porque nos querem curvadas. Meu pai dizia sempre que iria me “fazer curvar”, não conseguiu nesta vida. E todo dia essa luta se renova e se mostra necessária onde a gente achava que “tava tudo ganho”. Não tem fim essa merda. Então, quando dizemos que estamos cansadas, respeita, vai.