por Laluña Machado*
(ESSE TEXTO CONTÉM SPOILER SUAVE)
Escrever sobre o Batman não é nenhuma novidade para mim, afinal são 10 anos de pesquisa acadêmica que envolvem o personagem e todo o seu universo ficcional. Porém, é quase que absoluto que nesse tempo eu tentei manter uma distância científica para produzir materiais que possam proporcionar uma reflexão filosófica, sociológica e analisando contextos históricos que são representados em algumas narrativas, e principalmente, o contexto político em que esses quadrinhos foram criados e transformados. Todavia, com esse texto aqui, eu senti a necessidade de ter um cálamo diferente.
Cheguei a essa conclusão porque me dei conta que The Batman (2022) foi o primeiro filme que eu vi com os filtros de uma pesquisadora madura (eu sei, teve o Batman do Snyder… mas esse não conta), mesmo que eu não consiga mais me divertir tanto consumindo, já que me cérebro se acostumou com o modo de análise constante e orgânico. É o tipo de serviço que não me onera mais, mas eu procurei resgatar uma “inocência” para mergulhar na produção de outras formas. Para tanto, o conteúdo a seguir será escrito em primeira pessoa, outra coisa que eu não costumo fazer. Para mim é mais importante fazer conexões de conteúdo do que vomitar opiniões e discutir se o Batman deve ou não usar cueca por cima da calça.
Pois bem, quando foi anunciado que o Robert Pattinson seria o novo Batman, eu confesso que achei muito estranha a escolha do ator, até externei algumas palavras em discordância, e isso foi um erro. Principalmente, porque eu sou uma pesquisadora. Eu não posso me agarrar a uma produção infanto-juvenil do início dos anos 2000 e determinar toda a carreira do rapaz com isso. Sabendo disso, eu fui fazer o que faço de melhor… estudar. Eu assisti todos os filmes do Pattinson e li a maior quantidade de artigos sobre os trabalhos dele, e para a minha grata surpresa eu consegui não fazer parte de fandom histérico que orbita as histórias do Morcegão de Gotham. Além disso, a filmografia do diretor Matt Reeves também me interessava, ainda mais que como historiadora eu sei que nada vem do nada. Assim como os quadrinhos que serviram de inspiração como Batman Ano Um, O Longo Dia das Bruxas, Batman Terra Um, Batman Ano Zero e até mesmo o romance Wayne de Gotham, de Tracy Hickman. Eu entrei na sala de cinema sabendo o que iria ser representado, mas a minha maior ansiedade era sobre como isso ia ser representado.
Toda a produção quis resgatar o manto noir dos anos 1940 das histórias extraordinárias escritas por Bill Finger, um garoto que tinha inúmeras referências para produzir o que produzia. Um dos criadores do Batman, soube dar personalidade ao personagem e encaixá-lo num contexto de pós Grande Depressão e ascensão da Máfia em território estadunidense. Finger bebeu no expressionismo alemão, e principalmente na literatura policial. Podemos dizer que sem Edgar Allan Poe, Arthur Conan Doyle e outros autores/autoras o Homem Morcego não existiria, muito mesmo o Batman de Matt Reeves. Ora, se formos considerar a estrutura narrativa do filme ela se encaixa perfeitamente no arcabouço dos romances policiais do início do século XX que apresenta sempre o Herói¸ as Oposições Míticas (maniqueísmo), Preservação Retórica Consagrada (apresentando fatos que poderiam ser reais) e Atualidades Informativo-Jornalísticas (apresentação de ferramentas como laudos e perícias, além da atuação da imprensa). Reeves soube usar isso de forma majestosa durante o longa e com muita influência do cinema dos anos de 1970, principalmente com o protagonista fazendo o papel de narrador e situando o espectador.
The Batman nos coloca de frente com uma Gotham chuvosa, imunda, em que parece não existir a luz do dia. Existem poucas cenas de interações diurnas, o que faz lembrar e muito o Batman antes do código de censura dos anos de 1950 e durante a “Era das Trevas”, na segunda metade dos anos 1970. Além disso, esse Homem Morcego é mais “real”, há limitações de acessórios e aparatos teatrais. Esse Batman bate na porta e pergunta se a pessoa está. Também há uma sintonia perfeita com o Gordon de Jeffrey Wright, tanto que me fez pensar se em algum momento será necessário inserir o Robin se houver sequência.
Mas pulando para o outro lado moeda, eu confesso que quando foram anunciados tantos vilões eu fiquei extremamente cética e esperando o pior. O histórico de pesquisa me faz ser assim e nunca esquecer Batman Eternamente, Batman & Robin e Batman O Cavaleiro das Trevas Ressurge. Então quando eu soube que teria o Pinguim, Charada e Falcone foi inevitável pensar… vai dar merda. Porque é muito difícil trabalhar com qualidade usando tantos personagens com presenças relevantes numa mesma produção. Conquistar um diálogo fluído direito e indireto entre tantos personagens com uma carga simbólica não é coisa para amador (o Snyder sabe disso), e o Matt Reeves conseguiu fazer isso de forma impressionante. É a diferença entre você entender o que quer representar ou simplesmente “retratar”. O diretor de The Batman concedeu inúmeras entrevistas elencando todo o seu consumo sobre o personagem, além de perceber as motivações e gatilhos emocionais que Bruce/Batman tem. Foi a primeira vez que eu vi um ator que interpretou o Morcegão dizer que ele era deprimido, isso vindo de um artista que sofreu um dos maiores hates dos nerdolas.
Reeves também acertou no juízo que estabeleceu para Selina Kyle, que mais uma vez não foi claramente chamada de Mulher Gato como no filme Batman O Cavaleiro das Trevas Ressurge. Selina transita entre os dois cenários maniqueístas do roteiro obedecendo às suas demandas pessoais e, consequentemente, às questões que se apresentam de forma macro. O fato de Zoë Kravitz não ser sexualizada já é um grande avanço nesse tipo de filme, vide os antecedentes de Mulher-Maravilha e Viúva Negra. Essa Selina é sexy, mas ela não é objetificada. Porém, alguns eventos me foram extremamente desnecessários, principalmente os beijos aleatórios e trevosos/amorosos no Batman nos momentos mais “apropriados” [essa última frase contém uma dose cavalar de ironia].
Mas voltando para a Cavaleiro das Trevas, considerando que durante os últimos anos parece que o Batman e o Homem Ferro estabeleceram uma disputa no cinema para ver quem apresentava a maior quantidade de “brinquedos” construídos com o dinheiro desviado de suas empresas, nesse filme houve uma revolução conceitual nesse quesito. Posso dizer que a coisa mais moderna usada pelo Cruzado Encapuzado foi um par de lentes de contato capaz de fazer gravações em vídeos. Para tanto, todos os outros acessórios foram bem proporcionais ao que viria ser uma “realidade”. Contudo, o Batmóvel roubou a cena.
Muito diferente de tanques e automóveis que poderiam saber de cor as regras da ABNT (isso que é eficiência), esse Batmóvel é um carrão, bicho. Ele tem a mesma personalidade do Christine, um carro diabólico que passa por cima de tudo e que foi eternizado por conta da mente absurda de Stephen King. Esse Batmóvel é brutal e é real. Fazendo jus à falta de sorrisos do Homem Morcego.
Falando em falta de sorrisos, eu tenho que dizer que o Pattinson nos entregou um dos melhores Batman da história, mas sua interpretação como Bruce Wayne me deu vontade de alisar o cabelo, colocar My Chemical Romance no talo e chorar (“DC triste, então!”). Esse Bruce é tão melancólico que eu tive vontade de levá-lo ao psiquiatra para tomar um prozac, mas “talvez” se essa não fosse o tipo de ilustração usada para o personagem, o diretor não teria conseguido justificar a completa inércia dele para resolver as questões da sua herança, seu histórico familiar super suspeito e de como a Máfia se fez, sobretudo, com o dinheiro da família Wayne. Toda a trama que cinge os Wayne legitima os meus 10 anos de pesquisa, especialmente, quando eu digo que toda a criminalidade de Gotham é um resultado direto da incompetência de Bruce como gestor. Afinal, não é importante para um bilionário fazer políticas públicas, bom mesmo é desviar dinheiro para comprar brinquedos e espancar as pessoas.
Admito que saí do cinema com o sorriso no rosto por ter tido a oportunidade de ver todos esses anos de estudo sendo retratos com uma trilha sonora maravilhosa. Assistir The Batman sendo uma pesquisadora reconhecida na minha área tem outro sabor. Meu paladar intelectual aprendeu a fazer várias conexões e saborear as referencias do Vigilante de Gotham, mas sem perder o brilho nos olhos e soltar aquele “UOOOOU” no meio do cinema. Matt Reeves e Robert Pattinson me fizeram enxergar novamente minhas motivações de dedicar tanto tempo da minha existência na pesquisa. É quase um For The Batman.
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*Laluña Machado é graduada em História pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB, foi uma das fundadoras do Grupo de Estudos e Pesquisas “HQuê?” – UESB no qual também foi coordenadora entre os anos de 2014 e 2018. Do mesmo modo, exerceu a função de colaboradora no Lehc (Laboratório de Estudos em História Cultural – UESB) e Labtece (Laboratório Transdisciplinar de Estudos em Complexidade – UESB). Foi colaboradora do site Minas Nerds e atualmente é membro do Observatório de Histórias em Quadrinhos da ECA/USP, colaboradora na Gibiteca de Santos. Sua pesquisa acadêmica tem como foco a primeira produção do Batman para o cinema na cinessérie de 1943, considerando as representações da Segunda Guerra Mundial no discurso e na caracterização simbólica do Homem Morcego. Paralelamente, também pesquisa tudo que possa determinar a formação do personagem em diversas mídias, assim como, sua história e a importância do mesmo para os adventos da cultura nerd. Contato: lalunagusmao@hotmail.com