por Laluña Machado*
Desde as contribuições elaboradas e apontadas pelos estudiosos da École des Annales, na primeira metade do século XX, diversos matizes e tendências historiográficas puderam ser observadas não apenas no que alude aos objetos de estudo, mas aos próprios procedimentos de pesquisa e às fontes utilizadas, estabelecendo diálogos com diversas áreas de saber dentre as ciências sociais e, até mesmo, as exatas.
O legado deste movimento, como chamou o historiador Peter Burke, para a historiografia atual está na amplitude de possibilidades de análises históricas das relações humanas enxergadas a partir de uma série incontável de objetos, quer dizer, no bojo dos estudos acerca dos relatos das atividades e dos frutos elaborados pelos seres humanos está a sua passividade de observação historiográfica. As relações estabelecidas com outros saberes permitiram (e permitem) maior profundidade aos exames históricos sobre as mais variadas temáticas sejam elas políticas, econômicas, culturais, em âmbitos públicos ou privados, tratando casos específicos ou amplos, é claro, dentro de suas possibilidades.
Analisar historicamente a arte sequencial, torna-se uma tarefa possível se observarmos estes objetos como fontes de um dado período histórico e geográfico. Ora, estes fenômenos culturais estão intrinsecamente relacionados aos meios nos quais são produzidos e, enquanto representações do real, destinam-se à legitimação de determinados discursos, o que denuncia seu caráter parcial, sujeito aos interesses de grupos que possuam maior expressividade nas relações de poder num dado meio social. Portanto, como frutos de um tempo, estas produções culturais podem elucidar seus possíveis contextos políticos, tanto numa órbita macro quanto micro, além de estabelecer efeitos e usos para essas obras. Para tanto, elas também podem denunciar aspectos do imaginário de determinados grupos e agentes sociais na história dos Estados Unidos e de outros países.
Tidas como “literatura infantil”, a artes sequenciais podem passar desapercebidas nos diálogos que envolvem fontes e referências para a pesquisa histórica. Porém, a Nona Arte consolida-se como um fenômeno cultural que possibilita a identificação de aspirações, medos, angústias e questões histórico-sociais, mesclando em sua estrutura tipológica a linguagem escrita e icônica, criando sentido a partir de quadros sequenciais em seu enredo, pois compreendemos que a produção deste material reflete tanto o anseio de rompimento com os limites do comum e do mundano, quanto a existência de aparatos comerciais estáveis capazes de sustentar o surgimento e propagação deste tipo de mídia característicos de algum período histórico em questão. Afinal, conforme Carlo Ginzburg, os “sinais e indícios” são “zonas privilegiadas” de contemplação de uma realidade mais ampla, mas não estão expostos a céu aberto. Para aproximar-nos destes elementos, é preciso recusar as evidências mais facilmente localizáveis e olhar para os traços secundários e detalhes como algo capaz de atingir os pensamentos compartilhados por agentes um outro tempo.
Para além dos roteiros, também deveremos nos ater a uma abordagem da arte nas histórias em quadrinhos numa tentativa de recuperação de uma perspectiva característica de um determinado período histórico e de suas conjecturas geográficas, políticas, econômicas e estilísticas, considerando, não apenas a sua natureza técnico-estética, mas também sua natureza representativa. São textos aptos a abordar e chamar a atenção para questões sociais pertinentes ao seu espaço no tempo. Podem transmitir valores, sonhos, fantasias, medos… dos atores sociais de um dado contexto histórico. Além disto, a leitura desse tipo de produção não pode estar restrita ao próprio texto, que segundo Roger Chartier deve ser entendida como uma prática criativa que inventa significados e conteúdos singulares, resultado de uma relação dinâmica na sociedade afinal, a representação é um ato de ver-se no mundo e de ver o mundo em si mesmo.
Para tanto, as histórias em quadrinhos se estabelecem como uma mídia que tem total capacidade para serem usadas como fontes e/ou referências numa pesquisa histórica. Tão como uma representação ficcional de um período, e aqui podemos elencar 1602 do escritor britânico Neil Gaiman, que aborda um contexto histórico determinado pela Inquisição e pelo Mercantilismo utilizando heróis do Universo Marvel. Quanto quadrinhos como Maus de Art Spiegelman, que trata de forma mais “real” as narrativas de seu pai que foi um sobrevivente do Holocausto.
Ou seja, não importa a quem ou a quê simboliza e representa um quadrinho, ele estar passível de análise histórica como qualquer outro fenômeno cultural, além disso, pode ser usado como prova concreta das realizações (ou não) de uma determinada sociedade. Neste caso, se não houvesse essa possibilidade este livro não seria uma realização que também tem como base a análise científica do que é determinado como gibi.
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*Laluña Machado é graduada em História pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB e Pós Graduada História – Uniamérica. Jurada Técnica do CCXP AWARDS 2022, curadora do Santos Criativa Festival Geek, vencedora do Troféu HQMIX 2019 nas categorias Melhor Livro Teórico e Melhor Mix com a produção Mulheres & Quadrinhos e em 2022 com História dos Quadrinhos EUA na categoria Melhor Livro Teórico. Também conta com indicação no troféu Angelo Agostini como Melhor Publicação 2020 com o Mulheres & Quadrinhos. Além de ser a maior especialista acadêmica em Batman do Brasil. Foi uma das fundadoras do Grupo de Estudos e Pesquisas “HQuê?” – UESB, exercendo o cargo de coordenadora entre os anos de 2014 e 2018. Atualmente é membro da ASPAS (Associação de Pesquisadores em Arte Sequencial), colaboradora na Gibiteca de Santos, resenhista da plataforma Social Comics, colunista Mina de HQ e produtora de conteúdo do site Facada X.
Sua pesquisa acadêmica tem como foco a primeira produção do Batman para o cinema na cinessérie de 1943, considerando as representações da Segunda Guerra Mundial no discurso e na caracterização simbólica do Homem Morcego. Paralelamente, também pesquisa tudo que possa determinar a formação do personagem em diversas mídias, assim como, sua história e a importância do mesmo para os adventos da cultura nerd.