A gente sofre

por Roberta AR

Estava olhando a foto da minha avó na parede, agora tenho um espaço de pessoas amadas, coisa que nunca tive e decidi, aos cinquenta anos, ter. Mas, bem, estava olhando minha avó e me dei conta de que, neste ano de 2024, se completam os cem anos do casamento de dona Maria.

Maria, minha avó, era uma criança de 12 anos quando se casou com um homem de vinte e poucos anos. Coisa normal da época, mas nunca normal na existência de um corpo pequeno e frágil exposto a práticas sexuais que não entendia. Pensando bem, isso é coisa ainda hoje comum, pois estamos no quarto país com mais casamentos infantis do mundo. Apesar disso, é abuso sexual de vulnerável a prática com crianças e adolescentes com menos de 14 anos, o que faz pensar na minha avó e nessa tal história de amor que me contaram. Estou divagando de novo… Dona Maria foi mãe aos treze anos, a primeira filha dos oito filhos que teve, sete mulheres e um homem, minha mãe a mais nova de todos eles.

“A gente sofre, minha filha”, ela me dizia, quando conversávamos sobre a vida. Ela me falava de fome, falava do trabalho na roça. Nunca me falou do meu avô, também nunca perguntei, sabia intuitivamente que era algo dolorido. A gente tinha uns silêncios de cumplicidade, em que ela parecia querer me dizer algo, mas nem precisava. Ela sabia das minhas dores.

Minha mãe se casou com o filho mais novo de uma família conhecida da família dela, meu pai. Se casou com quase trinta anos, eu, primeira filha, nasci quando ela tinha 29 anos, algo raro naquele tempo, moderno. Meu pai queria um varão e nasci eu, para sua frustração que nunca foi escondida. E não bastava não ser homem, nasci com espírito rebelde. Ele, apesar de ser “um homem de esquerda”, e coloco aqui entre aspas porque suas práticas eram totalmente reacionárias, como a de muitos que se dizem de esquerda, fez nossa casa morada da violência cotidiana. Não podíamos sorrir, não podíamos chorar, a comida estava sempre ruim. Minha mãe sentia no corpo, presenciei os episódios nos vinte e poucos anos que morei com eles, mas sei que aconteceram até o fim da vida dele. Eu e minha irmã sofríamos a dor da humilhação cotidiana, da privação de cuidados essenciais, da falta de atenção a nossos corpos e mentes frágeis, a neurodivergência foi descoberta recentemente pela minha irmã e era eu sua cuidadora, porque precisávamos sobreviver. Depois de um tempo, comecei a sentir a violência no corpo também, mas reagi, gritei, ameacei. Eu era um corpo rebelde, lembra? Tinha outros rebeldes que me cuidavam, mas corri muitos riscos…

Eram 18 horas de ônibus até chegar na casa da minha vó, ela olhava no meu rosto e via minhas dores, sabia de tudo, nunca me disse nada além de “a gente sofre, minha filha”. Eu sentava ao seu lado na sala, naquelas tardes quentes do norte de Minas Gerais, sem fazer nada, às vezes tomando um chá, enquanto ela fazia bicos de crochê nos panos de prato que ficavam numa caixa. O cheiro das folhas de figo invadia a sala, a figueira ficava bem na frente da janela. Um dia descobri que uma marca famosa faz sabonete com aroma de folhas de figo, aquele cheiro de tardes quentes e gosto de pequi, que dona Maria não gostava, mas sempre fazia pra mim. O sabonete foi meu amuleto na minha mudança este ano, depois de uma separação com acordo na defensoria e possibilidade de virar outra coisa, violência…

A coisa pesada da ancestralidade violenta é que os padrões são naturalizados na gente, o cérebro não acredita que quem deveria cuidar maltrata, deveria ser instintivo garantir a segurança física, mental, emocional de alguém a seus cuidados, e não é, somos todos doentes de violência. E isso se torna o padrão do amor romântico, ficamos sem defesas naturais. Eu sofri violência sexual de um ex e tivemos um longo relacionamento mesmo assim. Tinha algo absolutamente errado, eu não conseguia saber o que era e sempre achava que era algo que eu poderia resolver, até que desisti e logo em seguida a prática que aconteceu comigo foi criminalizada como abuso. Foi um tremendo choque, eu só descobri a violência que sofri mais de uma década depois.

Faz dez anos que dona Maria se foi, já com 102 anos, não podemos nem reclamar que tivemos pouco dela, mas eu queria mais. Só nos aproximamos quando eu já era adulta, me esforcei para ficar perto o quanto pude e, num certo momento, tive que me afastar mais uma vez, porque a violência ancestral nos alcançou de novo. Mas eu acho que ela sabia o quanto eu a amava. E eu sinto profundamente seu cuidado até hoje. Ela me cuida de alguma forma quando ainda caio em armadilhas de amor romântico violento nos detalhes, no embrutecimento gradual dos discursos, no desprezo a minhas coisas… 

Minha avó um dia viu uma tatuagem minha e me perguntou onde ficaria bonito uma nela, rimos muito aquele dia. Prestava atenção em mim. Ela me falava dos namorados que ainda queria ter, um moço hospedado na casa dela, um belo dia, era um flerte de solteira, ou talvez de depois, não sei dizer, mas ela interessada nele, que estava se tratando de um problema de saúde e veio da roça, ela morava numa cidade maior. “Que pena que ele está mal…”, ela me disse e eu ri no meio daquela situação um tanto trágica, mas de uma vida que foi vivida até o final.

Dona Maria não sabia ler, nunca foi ao cinema, eu sinto muito por nunca a ter levado, nunca saiu do país. Teve oito filhos vivos até o seu fim, dezenas de netos. Bisnetos e tataranetos, alguns conheceu em vida, não faço ideia de quantos são. Centenas de pessoas saíram daquele corpo que sofreu violências das quais ainda não falamos entre os parentes, mas são brutais. Como se honra uma ancestralidade nascida da violência e da dor que se tornou o nosso normal desde que este país foi inventado por invasores?