O vazio entre os dedos

por Roberta AR

Ele não tem dois dedos em um dos pés. Ele olha e vê seu pé sem dois dedos. Eu não me lembro mais em qual dos pés lhe faltam os dedos. Eu não sei, mas ele sabe, porque é para a ausência que ele olha neste momento.

Foi numa fogueira de São João que aconteceu. Seus irmãos mais velhos se divertiam pulando as brasas que restavam num “pula a fogueira iaiá” e ele não teve dúvida e acompanhou a brincadeira. Suas perninhas de quatro anos não conseguiram chegar do outro lado e sua irmã só conseguiu evitar que ele todo assasse nas brasas, mas seu pé calcou fundo.

A partir de então, foi vítima da maledicência alheia. Seu apelido era dedinhos, porque dois de seus dedos atrofiaram o suficiente para ele não poder calçar sapatos. Crueldade infantil que deixou sequelas até em seus herdeiros, mas falemos disso mais para frente.

Teve que lidar com a atrofia durante toda a infância e boa parte da adolescência, porque aquele não era um tempo e nem o lugar para medicinas.

Um belo dia, então, ele chegou na cidade grande. Não bastasse o pânico que lhe causava aquele movimento todo, aquele tamanho todo – que fazia parecer insignificante a sombra daquela gameleira do quintal com tantos ninhos de passarinho que ele sempre perdia a conta – ainda tinha o pé que não podia calçar sapatos. E o frio era tão intenso, esse ele nunca tinha sentido também.

Foi no médico um dia. “Vai ter que amputar”, disse o doutor. Ele disse “tudo bem”, achando que ali se encerraria aquele capítulo.

No dia da cirurgia, foram muitas seringas de anestesia, mas, para ele, que me disse depois, parecia água, o pé estava lá, vivo, querendo falar algo incompreensível, mas isso fui eu que pensei. E a mensagem era apenas dor em cada passada do serrote que o doutor conduzia meticulosamente para “remover o dano”. Ele apenas pensava que aquela dor seria a última que viria dali. 

Sentiu cada minuto, mas ali estava o novo pé, que agora podia ser calçado e entrar na civilização. Entrar na vida adulta. Agora começava um tempo de responsabilidades e de deixar de ser o bebê chorão e medroso da família.

Trabalhou. Esse sempre foi seu maior orgulho. Foi honesto, repetia insistentemente.

Mesmo com o pouco que ganhava, comprou um terreno, distante, mas honesto. Casou-se com um menina da sua cidade, que viu poucas vezes na vida antes disso, arcando com um compromisso entre famílias, num namoro à distância que se arrastou por mais de uma década. Ele era o homem da cidade para os de sua terra natal.

Na cidade, ele era um assistente. Sempre solícito e silencioso. Os colegas de trabalho o achavam um tanto estranho, porque não gostava de festas, nem falava de futebol. Ninguém entendia porque ele nunca viu o especial de fim de ano do rei na TV, ou por que ele não gostava do show de calouros. Isso tudo era insignificante demais para ele, que era alguém superior, que estava além daquela mediocridade toda. 

Sonhou com o herdeiro, que seria sua continuidade, seu projeto, teria seu nome, mas não teria a deformidade que assolou sua infância. Mas em vez do varão, vieram três meninas. Três. Desprezíveis mulheres que queriam sua atenção e carinho.

“Você pensa que você é gente?”, ele repetia tanto quanto achava necessário para que aqueles serezinhos entendessem que não eram suficientes para ele. 

Com a mudança involuntária de planos, seu projeto para o mundo agora seria seu patrimônio, que causaria a inveja daqueles que o desprezaram no início da vida, e possivelmente arrumar um genro submisso para ser o estepe do herdeiro que não veio.

Desnecessário dizer que a grandiosidade de seu projeto estava apenas no universo da sua cabeça solitária. Sua vida simples, de ideias megalomaníacas, mereceriam uma grande novela, possivelmente um romance, que talvez seja escrito um dia, mas encerrarei por aqui, porque o que me interessa é o fim da história.

Já quase no início da sua velhice, por assim dizer, ou melhor idade, como dizem hoje em dia, ouvi de um conhecido seu de infância “conheço muito o dedinhos, ainda continua esquisito?”.

O pobre nunca conseguiu superar seu pé mutilado. No fim, contabilizou os chinelos especiais que comprou para esconder o vazio entre os dedos daquele pé que não lembro mais qual é. 

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Publicado originalmente no zine Pés – Volume I, lançado em 2014

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