“Não ficar de joelhos,
que não é racional renunciar a ser livre.
Mesmo os escravos por vocação
devem ser obrigados a ser livres,
quando as algemas forem quebradas”.
A frase chamou minha atenção na escadaria da escola. Aliás, não tanto a frase, mas o autor dela: Carlos Marighella. Aliás, não tanto o autor, mas a localidade em que foi citado. Itaim Bibi, um dos bairros mais metidos a besta de São Paulo. É meu bairro há mais de cinco anos. Posso falar.
Quando li a frase, ainda estava sob o impacto da peça teatral apresentada pelos alunos do primeiro, segundo e terceiro anos do ensino médio da Escola Nossa Senhora das Graças, mais conhecida como Gracinha – formalidade quebrada já na placa da fachada. Fui a convite do professor Rafael Masini – poderia dizer amigo, talvez? – que conheci há coisa de dois anos durante um curso que fiz no Célia Helena, tradicional núcleo de formação de atores/diretores. Ele foi meu professor lá. Corinthiano roxíssimo, lembra um roqueiro perdido no tempo. Cabelos longos, barbas longas. Aparência que esconde um coração gigante e histórias e dramas. Esconde tudo menos o sorriso e o bom humor e a simpatia e, acima de tudo, a intenção de levar arte para a molecada.
Masini ministra aulas de teatro no Gracinha. Ao que me parece, é um curso optativo. (Grande jornalista este que esqueceu de apurar mais detalhes… Outras lacunas vão aparecer no texto, fique avisado). Ele quer ampliar a abrangência da iniciativa, quer encontrar um espaço menos concorrido para ensaiar com os estudantes. Entro nesse ponto da história, mas não vem ao caso. Um jornalista desatento não merece espaço no próprio texto. Além do registro das suas impressões, claro. Fui para ver o resultado do trabalho dele.
Devo confessar que imaginava algo muito mais simples daquilo que me foi apresentado. Imaginava as cortinas se abrindo e que lá estaria um punhado de meninos e meninas com falas mecanicamente decoradas. Quem aí se lembra da dança inicial do clipe Do The Bartman? Ah, quer saber, podem me julgar! Aí está outro ponto sobre o qual posso falar por experiência própria. Fui João Grilo no ensino médio. Sim. Eu. João. Grilo. Quem me conhece pessoalmente pode imaginar toda essa minha desenvoltura malasarteana ribombando no palco como João Fucking Grilo. Deal with it. Era o próprio Milhouse com seus passinhos entregando falas das quais eu pronunciava até as vírgulas.
Enfim, quem mandou ser dominado pela soberba? Tomei. E tomei bonito. A começar pelas cortinas imaginadas. O palco da peça era a própria escola. Salas, corredores, cantina, biblioteca… Ao chegar, o diretor já deu a dica: “Sente-se aqui. É o melhor lugar pra começar”. Era um banco localizado no meio do pátio. A parte inicial da peça transcorria ali, ao nosso redor. Outra dica importante foi dada naquele momento. A história seria contada por dois grupos diferentes. Os espectadores escolhiam no início se seguiriam o Romeu ou a Julieta. Sim. A peça era essa. “Como vocês estão em casal (NR: fui acompanhado pela minha amadíssima Juju) recomendamos que cada um siga um personagem e depois vocês contam o que viram para o outro, mas… assim… vocês também podem ficar juntos o tempo todo”, disse Masini todo simpático, quase se desculpando pela ideia. Claro que seguimos a indicação.
Ao começar, minha garganta já tinha dado um nó. A peça era quase toda acompanhada por três atores com guitarra, violão e baixo, e canções entoadas pelo elenco. Sim, outra vez o jornalista desatento se faz presente: infelizmente não sei o nome de nenhum ator e também me esqueci de perguntar se as músicas eram todas originais. Não faz mal. Não tem ‘portância. Eles dominaram o espaço. Dominaram a atenção do público – ainda nesse ponto os times Julieta e Romeu estavam misturados – a coisa era grande. Parte do coro se misturava à plateia. Um outro escalara o muro e, ao fundo, desafiava a CIPA. Não demorou e, no melhor estilo Teatro da Vertigem (também me ocorreu alguma ligação com Sleep No More, montagem norte-americana de um original inglês comentada no ótimo podcast Bilheteria #5), cada personagem seguiu seu rumo com o respectivo séquito. Me separei da Juju para viver a minha versão da história.
Acho que não preciso detalhar o roteiro. Come on. Você sabe minimamente do que se trata. Também agora fico em dúvida se detalho ou não o que vi. Como converter em texto a experiência teatral? Foi incrível. E vez ou outra me pergunto se aqueles estudantes-atores tinham alguma noção do quão grandioso e legal era aquilo. Eles interagiam com as estruturas e o espaço da escola. A cena do balcão foi feita na escadaria ao redor do fosso do elevador. Todo protegido por firmes grades, Romeu namorava a amada trepado em barras de ferro. Debaixo dele, a queda. De onde estava, não pude ver a Julieta. A iluminação era feita por lanterninhas de led nas mãos do diretor e do staff (desculpem-me, meninas do staff… mas se vocês chegaram até esse ponto do texto, acredito que já tenham se dado conta da minha fama. Desculpem-me também pelo termo, meninas… espero que não soe pejorativo). Antes disso houve um lindo exercício em que quase todas as atrizes encarnavam Julieta em delírios de amor. O público se viu livre para explorar as salas. Uma se perdia no escuro da rivalidade das famílias, perambulando perdida. Outra declamava Shakespeare em francês (!!!) para logo em seguida interagir com um paletó pendurado em um mancebo. Ela vestia apenas uma manga e sua mão se tornava o toque do amado. Todas entregues ao personagem, ao teatro.
Por falar em entrega, depois soube de uma forte cena em que Julieta tomava conhecimento da morte de Teobaldo. Isolada no seu aposento, lavava suas mãos à espera de Romeu. Após a triste notícia, outras atrizes derramavam tinta vermelha à água. E a preparação para a cena do amor se tornava um prelúdio ou presságio do final drástico. Julieta se banhava em sangue. O team Romeu entrava no recinto exatamente após o fim dessa cena. Só o que vi foi o rosto da minha Juju completamente tocada, emocionada. As Julietas são trocadas (isso aconteceu durante a peça inteira… “Por que o Romeu foi interpretado por um mesmo ator e houve revezamento de Julietas?” taí outra pergunta não-feita) e há uma delicada cena de amor sugerida por um abraço e um beijo e interrompida pelo canto da cotovia.
A cena final, com todo o público novamente reunido após uma ou duas idas e vindas, aconteceu no auditório da escola. E novamente o palco foi um mero coadjuvante (somente ao término vi que aquele espaço só foi usado como apoio e guarda-volume para as mochilas dos atores). As cadeiras estavam dispostas nas laterais da plateia. Ao centro, Julieta jazia desfalecida em uma grande mesa que fazia as vezes de cripta. Do teto pendiam fios com lâmpadas que davam o tom soturno do encontro dos amantes. Romeu então mostrou a que veio (não que não tenha feito isso antes). Chorou copiosamente sobre Julieta. Choro, choro mesmo. Não aquelas lágrimas de vaselina das novelas. E então toma o veneno. O fim você também já conhece. Julieta acorda. A atriz também não fez feio. E, como diria Didi, morreu.
As luzes se acendem. A turma é aplaudida de pé. E, na saída, a frase que abre esse texto. E, na saída, Juju me confidencia que puxou de ouvido uma conversa entre duas estudantes da plateia. “Como eu gosto desse colégio!”. E, na saída, uma indelével memória dos meus tempos de João Grilo. A rua em que o Gracinha está localizado era quase idêntica aos fundos do ótimo colégio em que fiz o ensino médio. Aquele era o ponto em que as vans pegavam os alunos para levá-los embora. Tive professores incríveis por lá. Cláudio, Iberê, Simões, Gallo, Yara, Sato… mas o corpo discente não era assim dos mais brilhantes. Certo dia, naquela mesma ruazinha, um garoto de onze ou doze anos abriu a janela do micro-ônibus e, lá de cima, cuspiu no muro da escola. Eu estava passando e senti respingos no meu rosto. Não vou cair no fácil maniqueísmo, mas é difícil resistir às comparações entre o relacionamento dos jovens com seus colégios colhidas ao léu.
Caraca… sem palavras. Meus olhos começaram a suar aqui…
nono ano tambem fez hahah 🙂
Alô, Júlia! Desculpa a falha na informação e parabéns aos alunos do nono ano que atuaram! Alô, Fernandinho, valeu pela leitura!!!!! Super-abraço pros dois!