Sirlene Barbosa, a primeira indicada ao Jabuti de HQ por Carolina

por Roberta AR 

O primeiro quadrinho da novela gráfica Carolina foi de um impacto imenso para mim. Lembrei imediatamente da chácara que ficava no fim da minha rua, em Parelheiros, que tinha aquela senhora gentil que fazia biscoitos para mim. Eu era muito pequena, possivelmente no mesmo ano que aparece registrado ali. Teria eu conhecido a Carolina?

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Primeiro quadrinho da novela gráfica Carolina

 

A história de Carolina Maria de Jesus, escritora do livro mais vendido em 1960 no Brasil e que foi publicado em dezenas de países, é que faz o roteiro desse quadrinho comovente de Sirlene Barbosa e João Pinheiro. Ela era conhecida como a escritora catadora de papel, que era a forma da elite cultural colocar seu trabalho em uma caixinha de menor valor na produção literária, mas seu trabalho era visceral, um olhar apurado da sordidez e das pequenas felicidades que se alternam na vida dos que estão na extrema pobreza.

Sirlene Barbosa reuniu um grande material de pesquisa sobre vida e obra de Carolina de Jesus, que receberam um roteiro lindamente desenhado por João Pinheiro. Não por acaso, o livro acaba de ser indicado ao Prêmio Jabuti na primeira edição em que se terá uma premiação específica para quadrinhos. Sirlene Barbosa é a primeira autora indicada na categoria, a única mulher nesta edição. Conversamos um pouco com ela sobre esse belo trabalho:

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Sirlene Barbosa

O que levou a escolha de Carolina Maria de Jesus como tema para este quadrinho?

Antes das respostas, quero deixar registrado meus agradecimentos pelo contato.

Bem, estou professora de língua portuguesa da Prefeitura de São Paulo. Por alguns anos, coordenei uma sala de leitura (projeto da Secretaria Municipal de Educação [SME] que, este ano, completa 45 anos e, por conta desse fato, haverá um Seminário para comemorar e refletir sobre este espaço. Eu fui convidada a participar de uma mesa para representar o corpo docente, no papel de escritora) e, principalmente no ano de 2014 (gestão Haddad), a SME tinha um núcleo para propor trabalhos referentes às questões étnico-raciais. Alguns dos membros da equipe fizeram algumas palestras sobre literatura negra, fazendo jus à lei 10.639/2003, que altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (1996), colocando como pauta obrigatória os estudos da literatura, história e cultura negras em todos os ambientes educacionais.

Carolina Maria de Jesus já era uma companheira de aulas, há alguns anos, mas ouvir pessoas falando de nomes que não aparecem como referências do cânone (Carolina, por exemplo), que deixam de ser objeto de estudo em livros e passam a ser protagonistas de suas obras me deslumbrou e me fez olhar, com outros olhos, o acervo da sala de leitura que coordenava – observei que diante de uma média de 30.000 livros, havia apenas uma prateleira de livros (algo em torno de 50) que estavam relacionados à literatura negra.

Em 2014, foi comemorado o centenário de Carolina Maria de Jesus e eu recebi, no início do ano, alguns livros para complementar o acervo da sala. Analisei a discrepância de duas caixas com livros de Ferreira Gullar, somando 40 volumes, e dois, sim, apenas dois Quarto de despejo: diário de uma favelada (o grande best-seller de Carolina).

Essas discrepâncias me levaram a refletir sobre a questão do currículo escolar: por que se lê, com muita frequência, pra não dizer sempre, o cânone literário, representado, em grande maioria, por homens e brancas e brancos e ignoram o que os excluídos desta mesma literatura têm a dizer?

Assim, propus uma enquete rápida com os professores orientadores de sala de leitura da Diretoria Regional Educação de Itaquera, onde constatei que de uma média de 40 docentes, apenas cinco conheciam Carolina e NENHUM/A havia lido sua obra em sala de aula.

Esses pontos me obrigaram a apresentar a vida e a importância de Carolina; o gênero textual que acreditei ser mais didático e interessante, principalmente, para as/os estudantes, foi a História em Quadrinhos (HQ). Como meu companheiro é quadrinista (João Pinheiro), resolvemos concretizar o trabalho. Faltava, no entanto, condições financeiras para se dedicar com exclusividade à empreitada. No final de 2014, fomos um dos ganhadores do prêmio ProAC, do governo do Estado de São Paulo, possibilitando, então, concretizar o livro.

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Trecho de Carolina

Mesmo depois de tanto tempo, ainda temos grandes figuras do meio literário tentando diminuir a importância da Carolina de Jesus para a literatura, como no episódio em que ela foi homenageada pela Academia de Letras do Rio. Literatura ainda é uma arte elitista?

Acredito que sim, mas, também, que representantes das literaturas periférica, negra e indígena estão abrindo estas portas, mesmo que a “pontapés”.

Um exemplo importante: em 2014, apareceu um projeto na SME chamado de Leituraço, em que se propunha a leitura de livros que tentavam validar as leis 10.639/2003 e 11.645/2008 (propõe os estudos da história, arte e literatura indígenas). Todas as salas de leitura do município paulista receberam livros com estas temáticas, além de literaturas que abordam a vida na periferia, bem como da América Latina e de alguns países do continente africano – projeto belíssimo, por sinal, muito bem executado, pelo menos, até o final de 2016.

Dessa forma, foi possível apresentar aXs estudantes outras/os autoras/es, narrativas, protagonistas – foi uma tentativa de descolonizar o currículo da rede municipal paulista. Currículo que aborda com muita ênfase nomes e fatos do continente europeu e menospreza nossa realidade. Dizendo isso não significa que se deixará de ensinar o que a Europa e/ou os EUA têm de importante, no contexto histórico mundial e nas suas literaturas etc. Não! Descolonizar para ensinar que não existe apenas a estética europeia como padrão de beleza, nem seus ambientes gelados como cenários da narrativa, mas dizer que negras/os (por conta de um recorte de pesquisa, pois não podemos nos esquecer da importância dos primeiros moradores do que, hoje, chamamos Brasil – OS INDÍGENAS – e que tiveram suas terras INVADIDAS e não ocupadas, foram assassinados,

estupradas/os, enfim, destroçadas/os) também podem ser princesas, que não foram/são preguiçosos, que foram/são protagonistas de suas próprias narrativas, inventores importantes, por fim, mas não somente, SÃO ESCRITORAS/ES – sim, a literatura também é nossa!

Quarto de Despejo vendeu mais que Jorge Amado e Clarice Lispector no ano de seu lançamento e fala da realidade dos excluídos, um tema que tem paralelo em autores como Graciliano Ramos. O que teria levado seu trabalho a não estar presente nos currículos escolares e só recentemente foi pedido em algumas provas de vestibular e virou tema de Enem?

A tentativa de esconder a grandiosidade de negras/os, de mantê-las/os no poço literário.

Você é a primeira mulher indicada ao prêmio de quadrinhos do Jabuti, e única. O espaço das publicações sempre foi um território difícil. Qual o paralelo que você faria entre o cenário vivido por Carolina de Jesus e o que vivemos hoje?

O paralelo que faço é que ainda há muito a caminhar, pois não posso ignorar o fato de que sou a única mulher e NEGRA a ser indicada, mas tenho um homem do meu lado.

Carolina tentava publicar já há alguns anos, bem antes da chegada do jornalista do que hoje conhecemos como Folha de S.Paulo, Audálio Dantas, em maio de 1958, mas só o fez, em 1960, tendo homens como seus editores.

Finalizo afirmando que há muito a se fazer, principalmente para nós mulheres, negras, indígenas, brancas, trans e periféricas, e que, é de suma importância, estarmos na ponta para abrirmos as portas para outras irmãs e isso não significa dizer que pretendemos derrubar os homens, mas que a luta não termina enquanto os direitos por igualdade, em todos os âmbitos, não forem alcançados por nós, mulheres.

É isso e tudo isso!

Um grande abraço a todas as manas e aos manos!

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Capa do quadrinho Carolina

Carolina

Sirlene Barbosa e João Pinheiro

Editora Veneta

Número de páginas: 124

Formato: 17x24cm

R$ 54,90

 

Entrevista publicada originalmente no site MinasNerds em outubro de 2017