por Bob Black*
“Existe tanta liberdade numa moderada ditadura
desestalinizada como num ordinário local de
trabalho americano. A hierarquia e a disciplina
no escritório ou na fábrica é idêntica àquela
que encontramos na prisão ou num convento.”
Nunca ninguém deveria trabalhar.
O trabalho é a gênese de grande parte da miséria do mundo, é causa de muito do mal que acontece. Somos obrigados a viver sob o seu desígnio. Para acabar com o sofrimento, temos que parar de trabalhar.
Isto não significa que tenhamos que desistir de fazer coisas. Mas sim, provocar uma revolução jocosa, uma nova onda de vida baseada no divertimento. Por divertimento entenda-se festividade, criação facultativa, convívio. O divertimento não é passivo, é muito mais do que o jogo das crianças.
Invoco a aventura coletiva num prazer generalizado, numa exuberância gratuitamente interdependente. Necessitamos de mais tempo de pura preguiça e descanso indiferente ao salário ou à ocupação. Reparem, uma vez saídos do emprego quase todos nós queremos representar, o que conduz ao esgotamento.
Oblomovismo e Stakhanovismo são dois lados da mesma invenção humilhante. Uma vida jocosa não é compatível com a realidade. O pior, é a maneira de encarar a vida como mera sobrevivência. Curiosamente — ou talvez não — todos os antigos ideólogos são conservadores porque crêem no trabalho. Alguns, como os marxistas e a maior parte dos anarquistas, crêem nele porque acreditam em pouca coisa.
Os liberais dizem que há que eliminar a discriminação no emprego. Nós dizemos, há que acabar com ele. Os conservadores apoiam o direito ao trabalho. Imitando o travesso genro de Karl Marx, Paul Lafargue, apoiamos o direito à preguiça. Os esquerdistas são a favor do emprego permanente. Nós estamos a favor do desemprego iminente. Os trotskistas agitam-se por uma revolução permanente. Nós debatemo-nos por uma orgia latente.
Todos os ideólogos que defendem o trabalho são estranhamente relutantes em confessar que o fazem em seu próprio benefício. Sempre preocupados com o salário, as horas, as condições de trabalho, a exploração, a produtividade, a rentabilidade, estão dispostos a falar, mas sobre o trabalho. Estes peritos que se oferecem para pensar por nós raramente partilham as suas conclusões sobre o trabalho, projetando-nos assim a vida. Até lançam larachas uns aos outros sobre particularidades. Sindicatos e administrações embora hesitantes sobre o preço, concordam que temos que vender o tempo da nossa vida em troca da sobrevivência.
Os marxistas pensam que devíamos ser governados por burocratas. Os “libertarianos” optam por homens de negócios. As feministas nada têm a obstar, desde que sejamos governados por mulheres. É óbvio que estes ideólogos têm diferentes opiniões acerca do modo de iludir o roubo no poder. Obviamente, nenhum deles põe qualquer objecção ao que se passa, desde que continuemos a trabalhar.
Talvez não estejam a levar a sério o que estou a dizer. Não somente estou a brincar como também estou a falar a sério. Ser jocoso não significa ser burlesco, embora a frivolidade não seja trivialidade. Muitas vezes convém tratar a frivolidade de um modo sério. Gostaríamos que a vida fosse um jogo, mas um jogo de alta aposta. Queremos jogar para nos defendermos. Ser jocoso não é ser “quaaludic”. Temos em grande estima o torpor, mas só é recompensador quando pontuam outros prazeres e passatempos. Não estamos a promover a desocupação como uma disciplina administrada, chamada o “descanso”, longe disso. O descanso quer dizer não trabalhar por amor ao trabalho, é o tempo em que saímos do emprego sem todavia deixar de pensar nele. Muita gente existe que, ao regressar de férias, fica tão deprimida que só descansa depois de retomar o seu posto. A diferença entre o trabalho e o descanso reside no fato de no trabalho sermos, pelo menos, pagos pela nossa cedência e enfraquecimento.
Não estamos a tentar definir jogos. Quando dizemos querer abolir o trabalho, queremos mesmo dizer isso, definindo os nossos termos de um modo não idiossincrático. A nossa mínima definição de trabalho é aquela em que somos obrigados a produzir, isto é a produção compulsória. Ambos são princípios essenciais. O trabalho é a produção pela economia ou por meios políticos, por pessoas de cabelos ruivos ou por pregadores, por outras palavras, a cenoura é igual ao pau. Porém, nem tudo o que criamos é trabalho e ele nunca é propositadamente executado, é-o para que alguém saia beneficiado da sua produção. É isto que significa o trabalho. Defini-lo é desprezá-lo. E assim sendo, é muitas vezes pior do que a sua própria definição. É necessária uma cuidada elaboração do tempo. Adiantando, o trabalho é um crivo nas sociedades, incluindo as industrializadas, sejam elas capitalistas ou comunistas. Por isso ele é variado, conforme às suas características para realçar todo o ódio que em si encerra.
Usualmente, (e isto é ainda mais verdadeiro em sociedades cuja economia se encontre estatizada, do que nas de “livre mercado”, onde o Estado é na maior parte dos casos, o único empregador e onde toda a gente é empregada) o trabalho é uma ocupação e é “salariato”, o que quer dizer que tenho que te vender ao “Plano”. No entanto, 95% dos americanos que trabalham fazem-no para alguém. Na defunta URSS ou na atual Cuba, ou em qualquer outra experiência do “socialismo de Estado”, o qual necessita da força da adulação, o número dos empregados aproxima-se dos 100%.
Enquanto os camponeses do denominado “terceiro mundo2 — no México, Brasil, Turquia — se dedicam à agricultura, uma tradição que dura há muitos milênios, todos os que trabalham na indústria e nos escritórios são empregados que estão bem vigiados. Pagamos impostos ao Estado e renda aos senhorios para podermos adquirir o sossego. Este é, aliás, um negócio que continua de vento em popa.
Todavia, o trabalho moderno tem muito piores implicações. As pessoas não só trabalham como têm tarefas. Cada um tem uma tarefa a cumprir, o que equivale a produção diária. Mesmo quando a tarefa não nos dá muito que fazer (o que praticamente não acontece), a monotonia da sua obrigatoriedade esgota a nossa potencialidade de divertimento. O emprego significa o aluguel das energias de uma pessoa por um limite de tempo razoável. E por mais engraçada que a tarefa seja, aquilo que tem de ser feito durante quarenta horas por semana, já não falando das condições em que tem de ser executado, é somente um fardo. O objetivo são os lucros dos proprietários que não contribuem em nada para o projeto. Isto é o verdadeiro mundo do trabalho: um trabalho burocraticamente impudente, sexualmente devastador e discriminatório, com os chefes cabeças ocas a explorar e a escapar dos seus subordinados, se for caso disso, bem entendido. O capitalismo na vida real suborna aquele que mais produz por exigência dum controloe central.
A degradação que muitos trabalhadores experimentam é a condição imposta pela denominada “disciplina”. Foucault classificou, de modo simples e satisfatório, este fenómeno de “complexado”. A disciplina consiste na totalidade do tempo estipulado no emprego. Por outras palavras, cumprir sem ficar isento da vigilância do trabalho corrompido, do trabalho forçado, da produção contigente, etc. A disciplina é aquilo que a fábrica, o escritório e a empresa partilha com a prisão, a escola e o hospital psiquiátrico. É uma coisa historicamente original e terrível. Muito para além das capacidades de alguns ditadores demoníacos como Nero, Gengis Khan e Ivan “o terrível”. Para todos os seus maléficos propósitos, nunca dispuseram do mecanismo para o controlo dos seus súditos tão perfeito como aquele de que dispõem os modernos déspotas. Disciplina é o diabólico modo moderno de controle. É uma inovadora intrusão que necessita de ser interditada na primeira oportunidade.
O divertimento é o oposto do trabalho.
O divertimento é sempre voluntário. Quando é forçado, é trabalho. É axiomático. Bernie de Koven definiu o divertimento como uma “suspensão de consequências”. O que não é aceitável se significar que o divertimento não tem consequências. Jogar e dar são hermeticamente relativos, são procedimentos e facetas transaccionais do mesmo impulso, o instinto do divertimento. Ambos partilham um desprezo aristocrático pelos resultados. O jogador ganha alguma coisa quando joga. É por isso que ele joga. Mas o prêmio é a experiência obtida pela atividade — seja ela qual for. Alguns estudantes atentos ao divertimento, como Johan Huizinga (Homo Ludens) definem o jogo como uma ação onde se seguem regras. Respeito a erudição de Huizinga, mas rejeito os seus constrangimentos. Há inúmeros bons jogos — xadrez, basquetebol, monopólio, “bridge” — que têm regras, porém, existe no divertimento muito mais coisas do que aquilo que existe nesses jogos. Preservação, sexo, dança, viagens — estas práticas não possuem regras mas não deixam por isso de poderem ser divertimento. Podemos jogá-las com regras, mas, pelo menos, sem ser imperioso estabelecê-las com antecedência.
O trabalho troça da liberdade. O perfil oficial é que todos temos direitos e vivemos em democracia. Outros infelizes que não dispõem das mesmas liberdades que a nós se dispensa, são obrigados a viver num Estado onipotente e inquisidor. Estas vítimas obedecem a ordens, não importa a sua arbitrariedade. A autoridade conserva-as debaixo de uma apertada vigilância. O Estado controla até ao mais pequeno pormenor a vida de cada um. Os informadores fazem regularmente relatórios para as autoridades. Os guardas encarregadoss do controle somente entregam os seus relatórios aos superiores, sejam “públicos” ou “privados”. A dissidência e a desobediência são punidas. Tudo isto é suposto ser uma má coisa.
Obviamente que é de fato péssimo e trágico viver em semelhante sociedade. Todavia, o que acabamos de relatar é também a descrição do emprego moderno. Os liberais, conservadores e “libertarianos” que se queixam do totalitarismo são fonéticos e hipócritas. Existe tanta liberdade numa moderada ditadura desestalinizada como num ordinário local de trabalho americano. A hierarquia e a disciplina no escritório ou na fábrica é idêntica àquela que encontramos na prisão ou num convento. Na verdade, como Foucault e outros mostraram, prisões e fábricas nasceram ao mesmo tempo e os seus membros imitam conscientemente as técnicas de controlo um do outro. Um trabalhador é um escravo temporal. O patrão determina as horas a que tens de entrar, quando é que tens de sair e o que tens de fazer durante esse espaço de tempo. Ele decide a quantidade de trabalho que tens de fazer e a rapidez em que o realizas. Ele é livre para te controlar, até para te humilhar, guiar e se ele achar necessário, escolhe a roupa que deves vestir ou quantas vezes poderás ir à casa de banho. Com algumas exceções, pode despedir-te com ou sem causa alguma. Ele tem os seus espiões e supervisores em cima de ti e possui um processo de cada trabalhador. E, se o trabalhador comete um ato de “insubordinação”, como se ele fosse uma criança má, não só o despede, como também o desqualifica para futuros empregos. É claro que as crianças recebem o mesmo tipo de tratamento em casa e na escola, justificado pela sua imaturidade.
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*Robert Charles Black Jr., mais conhecido como Bob Black (Detroit, 1951), é um advogado e anarquista estadunidense. Tem uma formação acadêmica respeitável com graduações em Ciências sociais e Direito, além de dois títulos de mestrado. Porém, o que o tornou famoso, foram cartazes anarquistas, situacionistas, comedianistas e absurdistas que criou à frente da “Última Internacional”, entre 1977 e 1983. Além da ação panfletária, escreveu centenas de ensaios, distribuídos indistintamente entre periódicos anarquistas, jornais da área de direito e órgãos da grande imprensa, como Wall Street Journal, Village Voice, Semiotext(e) e Re/Search. Publicou Abolição do Trabalho e Outros Ensaios (1985), Fogo Aliado (1992), Beneath the Underground (1994) e Anarchy after Leftism (1996). Cria jogos de palavras, aliada ao humor ácido e ao conhecimento teórico.