por Laluña Machado*
A minissérie Batman: Cavaleiro Branco que foi dividida em 8 edições, escrita e desenha por Sean Murphy, traz algumas discussões sobre o “efeito Batman” em Gotham City. A base narrativa se molda por meio do questionamento sobre a real necessidade do centro metropolitano ter um super-herói, considerando aspectos morais e deveres civis tanto do Batman, como de Bruce Wayne, de Gordon e demais autoridades. A história nos mostra outros filtros de interpretação para as ações do Homem-Morcego como vigilante e do papel permissivo do Estado (até certo ponto) para com essas mesmas atitudes. Porém, o que por algumas vezes chama realmente a atenção no decorrer da leitura, é o como o autor aborda a relação do Batman (um vigilante) com o Comissário Gordon (um agente estatal). Uma antítese de duas personalidades que perdura por 80 anos e é caracterizada como um dos pilares de toda a diegese do Cruzado Encapuzado.
Essas questões entre Bruce e James ficaram mais marcadas em Batman Ano Dois (1987), que externa os primeiros momentos de Gordon como Comissário de Polícia. Há um diálogo entre Gordon e um entrevistador de TV que qualifica de forma didática essa “parceria” entre os dois:
“Entrevistador: Você parece ter um bom relacionamento com a força policial de Gotham, mas muitos questionam seu relacionamento com esse vigilante mascarado, o Batman.
Gordon: A relação do meu departamento como Batman é estritamente…
Entrevistador: Muitos sentem que Batman não é melhor que o criminoso fantasiado que assombrava as ruas de Gotham vinte anos atrás, autodenominando-se Ceifador.
Gordon: Essa comparação foi feita, mas injusta.
Entrevistador: Alguns dizem que foi a saída repentina do Ceifador de Gotham que mergulhou a cidade no mar de crimes e corrupção policial dos quais ela acaba de sair.
Gordon: Se você me deixar terminar: eu não posso falar pelo departamento de vinte anos atrás, mas Batman trabalha com a polícia e não contra nós.
Entrevistador: E esse “Batman” é um representante autorizado da força policial?
Gordon: Não, ele opera sozinho. Mas me ofereceu seus serviços.”
Pois bem, esse fragmento nos mostra de forma clara como funciona os “trabalhos” da Batman em “parceria com o Estado”. Aqui Gordon legitima as ações de alguém que viola os direitos civis e pratica atos de vigilantismo que também são considerados crime. Ok, o Batman aqui exerce uma função que o Poder Estatal deveria fazer, mas em vez disso prefere ser “sócio” de um cara que se veste de morcego e que tem um arsenal bélico que a polícia jamais sonharia em adquirir. Nesse processo, se estabelece uma ordem precária que o leitor acaba considerando legítima.
Mas considerando as teorias sociológicas do jurista e economista Max Weber (1864-1920), isso seria completamente infundado. Para Weber, o Estado é uma instituição legítima e ela traz segurança; ele é “bom”. Contudo, o diálogo acima nos coloca em hesitação em relação a uma ordem além do Estado, ou seja, Weber também destaca que mesmo o Estado sendo “soberano”, não é o único agente a usar a violência com legitimidade, porque a sociedade também tem obrigações a serem cumpridas sobre segurança (repare que ele diz SEGURANÇA para a sociedade em si, não VIOLÊNCIA). Além disso, o teórico alemão explica que “o Estado acredita que deve monopolizar o uso legítimo de violência”, considerando isso, que na maioria das histórias da década de 1980 pra cá que o Batman acaba sendo perseguido de alguma forma pelos três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário).
Esse tipo de debate também é exposto do Batman: Cavaleiro Branco, principalmente após discursos de Jack Napier (Coringa), agora como vereador (membro do Poder Legislativo) em relação às condutas do Cruzado Mascarado. Napier sugere projetos de lei que dão maiores condições para o Estado exercer autoridade em relação ao Batman, com isso, foi instituída a unidade de Opressão ao Terror de Gotham após alguns acontecimentos que “mancharam” a imagem do Homem-Morcego com a população.
“Napier: Usaremos o dinheiro pra criar uma força-tarefa de elite reunindo nossos melhores policiais aos nossos melhores justiceiros… um esquadrão de superpolicais. É o acordo perfeito misturando vigilantismo com os melhores de Gotham. Faremos o Batman trabalhar com a corporação em vez de a margem dela.
Gordon: Você quer substituir a máscara do Batman por um distintivo?
Napier: Ele e seus garotos podem manter a identidade secreta. Tudo que pedimos é que usem um GPS, câmeras de vídeos e ajam dentro das regras. Só pedimos responsabilidade.”
No decorrer da narrativa, a unidade é implementada e o Asa Noturna junto com a Batgirl começam a trabalhar diretamente para a polícia de Gotham, seguindo todas as regras impostas, inclusive o uso de uniformes. Nesse caso, tanto Dick Grayson quanto Barbara Gordon já não desafiam mais o monopólio legítimo do uso de violência, os dois iniciam a qualificação da teoria Weberiana quando a OTG consegue prender o Batman e consequentemente fazer uso da sua base bélica para combater “grandes vilões”. Aqui não há alterações práticas em relação aos métodos de violência usados pelo Asa Noturna e pela Batgirl quando os mesmos começam a serem “bem-vistos” aos olhos da Lei, o que há é a legitimação desses métodos pelo Estado, que nesse momento se utiliza de dois braços para manter esse tipo de ordem que são o Legislativo na figura pública de Jack Napier e do Executivo na figura do Comissário Gordon.
Tal passagem nos faz refletir sobre as brechas que existem entre ordem e lei e se o Estado tem sido minimamente promissor para Gotham, mas, se fosse realmente, eu não estaria aqui escrevendo esse texto. Além disso, nós como leitores de quadrinhos não estamos isentos de qualquer interpretação social ou/e filosófica sobre o que consumimos. Afinal, autores e quadrinhos também são agentes sociais e refletem algo meio e contexto.
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*Laluña Machado é graduada em História pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB, foi uma das fundadoras do Grupo de Estudos e Pesquisas “HQuê?” – UESB no qual também foi coordenadora entre os anos de 2014 e 2018. Do mesmo modo, exerceu a função de colaboradora no Lehc (Laboratório de Estudos em História Cultural – UESB) e Labtece (Laboratório Transdisciplinar de Estudos em Complexidade – UESB). Atualmente é membro do Observatório de Histórias em Quadrinhos da ECA/USP, colaboradora na Gibiteca de Santos e do site Minas Nerds.Sua pesquisa acadêmica tem como foco a primeira produção do Batman para o cinema na cinessérie de 1943, considerando as representações da Segunda Guerra Mundial no discurso e na caracterização simbólica do Homem Morcego. Paralelamente, também pesquisa tudo que possa determinar a formação do personagem em diversas mídias, assim como, sua história e a importância do mesmo para os adventos da cultura nerd. Contato: lalunagusmao@hotmail.com