A gaivota cega (parte 5)

Raul Córdula*

Comecei perguntando se as cores tinham significado para ele, e ele me disse de cara, “na lata”:

– Claro, o vermelho é como o grito do pavão!

Senti que aquela conversa ia ser longa e excitante. Para não pegar pesado pensei em descrever um quadro muito simples, de uma fase minimalista onde eu somente trabalhava as cores primárias, o branco e o preto, e formas também primárias: triângulos, quadrados e círculos.

– Então – disse – imagine um retângulo azul intenso.
rau
– de que tamanho?

Aristides me dava outra informação sobre a cegueira: o senso espacial. Era óbvio que para ele as dimensões, que para nós não importam porque vemos, e com perspectiva, contava muito, contava literalmente pois seus passos eram medidas fundamentais para seu deslocamento.

– um metro de altura por um e meio de largura, respondi.

– Hum! É bem bonito…

– Como, assim?…

– É muito bonito visualizar um retângulo azul intenso perdido na imensidão negra que é o meu panorama, minha janela.

– Como é o azul para você?

– Eu me lembro do céu, da imensidão, como minha janela, mas azul. Mas as cores também têm outras significações, o azul às vezes é como o chocolate, ou como o iogurte de frutas. Posso pensar no azul também como um beijo no pescoço: arrepiante, mas suave e plástico.

– Como plástico?

– Elástico, sensual, maleável.

– Você disse antes que o vermelho era como o grito de um pavão. Que vermelho?

– Ah! Você agora falou, Que vermelho? Há muitos tons, eu sei, há um vermelho sangue, me lembro, mas há vermelhos diferentes, como gritos de pavões ou pancadas de metais. Quando digo “pancadas de metais” não estou falando só de sino badalando, estes, ás vezes, soam como verdes, mas de sons do frevo, quando todos os instrumentos de sopro metálicos, trompetes, trombones, tubas, tocam uníssonos a mesma nota. Este é um vermelho paideguas!

– Você gosta de frevo?

– Claro, sou pernambucano, pra mim o frevo é o jazz daqui. Na América escuto muito, e mostro aos amigos americanos, que babam… Mas fale mais da sua pintura.

– Bem, imagine agora um quadrado amarelo no centro do retângulo azul. Um quadrado de oitenta centímetros de lado, que deixa uma margem azul de dez centímetros em cima e em baixo dele e de trinta e cinco centímetros de cada lado.

Por um momento Aristides pensou imóvel, e disse:

– Lindo! Uma janela amarela na janela azul que se instalou na minha inexorável janela negra.

– como é o amarelo para você?

– Meu pai criava canários. Tinha um com meu nome, era meu, meu pai dizia que ele cantava “Aristides”. Não vou dizer aqui que o amarelo para mim é como o meu nome, seria muito fácil, mas me lembro das tardes mornas onde uma luz dourada se derramava na varanda em Casa Forte. Eu me lembro do amarelo das folhas mortas e os outros tons ocres e marrons, me lembro do chão da estrada real do Poço e da beira do Capibaribe. As tardes eram puras e cheiravam a mata. Verdes e amarelos percorrem minha janela… Mas o amarelo pode ser também para mim algo metálico, cortante, agudo e brilhante. De qualquer forma é muito bonito ver um retângulo azul com um quadrado amarelo no seu centro.

– Você falou em centro, o que isto significa pra você?

– Aprendi a dizer que estou no centro, o mundo parte de mim, este é uma das condições para o cego se movimentar. Mas, por outro lado, eu procuro o centro das coisas, paradoxalmente, para me sentir feliz.

– Fale sobre isto.

– É assim como mergulhar em abismos, como penetrar uma mulher. Eu gosto de imaginar estes mergulhos no centro das coisas, das pessoas, dos rios, da terra.

– Seria como um desejo de morte?

– De morte em vida. Mas também é como atender a um desejo do outro, é como atender ao apelo do mar e da terra pelo meu corpo, ou como levantar vôo com o as gaivotas. Em São Francisco há muitas gaivotas que fazem barulho sobre os barcos da marina onde meu amigo Steve tem um barco. Penso agora que o vôo das gaivotas é um outro tipo de mergulho: um mergulho no nada, no espaço, sem resistência e sem rumo.

– E o quadrado, o que é pra você?

– Minha sala. Meu quarto. Meu livro de Braille. O limite…

– A terra é quadrada?

– Para mim é.

– E o céu?

– É redondo.

– E o inferno?

– Somos nós. Mas eu li isto num livro, não leve em conta. Não leve em conta porque na verdade o inferno somos nós, mesmo. Uma verdade tão verdadeira assim se torna banal. E nessa sua conversa que já virou entrevista você espera de mim respostas inteligentes.

– Não queira afirmar com ironia sua idéia do inferno. Eu acho que nós podemos ser também o Céu. Às vezes eu sou o Céu, às vezes o outro é o Céu: sua amada, seu amigo, seu filho, seu herói… E às vezes eu sou o inferno para mim e para os outros. É relativo.

– Como tudo

– Voltemos à composição do quadro, imagine um triângulo negro com sessenta centímetros de lado, eqüilátero, no centro do quadrado.

– Mais uma vez ele parou, esperou, e disse:
– O que é um triângulo? Eu já vi, penso muito em triângulos, imagino triângulos de cores, e negros também, mas o que é um triângulo? De onde vem, quem inventou? Para mim, que vi tão pouco, não há muitas referências a triângulos. Lembro de triângulos desenhados em um muro, que eu sabia significar o sexo feminino. Para mim era estranho, os meninos falavam, mas eu nunca vi uma vagina de mulher, vi de meninas, que eram como um risco. Mas triângulos com um risco no meio e coberto de rabiscos que sugeriam pelos para mim eram garatujas de menino. As vaginas eu somente pude sentir com o tato, quando grande, e não me parecem triângulos, parecem mais ostras, polvos, camarões, casulos de bicho da seda. Quero saber se seu triângulo negro está com o vértice para cima ou para baixo? Se for para cima é um altar, se for para baixo pode ser uma vagina.

– Primeiramente minha arte não se relaciona à natureza, as figuras geométricas que pinto são triângulos, quadrados e círculos mesmo, você simbolizou tudo que pintei até agora, mas a maioria das pessoas simboliza tudo, você não é exceção. Segundo, uma vagina pode também ser um altar, depende de sua atitude diante dela. Aliás, arte é atitude…

– Outras referências de triângulos – retomou Aristides – são coisas parecidas com folhas e flores. Mas o conceito principal do triângulo para mim – e você falou em triângulo eqüilátero – não se limita à figura geométrica. A idéia da Trindade é importante pra mim, e abrange o sagrado e de profano ao mesmo tempo. Sou católico e a Santíssima Trindade é a eterna egrégora que preside todos os meus atos. Confesso que sou religioso e místico, jamais me desliguei dessa realidade, mesmo quando me transferi para a América do Norte, país protestante e pragmático. Os protestantes também são cristãos, você vai argumentar, e reconhecem a Santíssima Trindade, mas não são místicos, a religião para eles é uma forma de viver esta materialidade na perspectiva de sucesso profissional e financeiro e suas igrejas são, na verdade, instituições sociais progressistas e pragmáticas, nunca centros de transcendência e de fé como chegam a ser as católicas.

Seu triângulo preto é para mim como um furo negro através do quadrado amarelo do retângulo azul. Ele é da cor da janela da minha alma e eu posso passar por ele para chegar do outro lado. É um portal para o outro lado.

– Mas o que é o outro lado, perguntei.

– É uma alternativa, outra realidade que por acaso eu queira que aconteça. Não se esqueça que eu posso projetar na minha janela tudo que eu quiser. Na verdade eu posso ser um pintor para mim mesmo, só tenho de criar mentalmente meus quadros. Conversando com você eu estou virando um pintor.

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*Raul Córdula é pintor, paraibano, fundou o Museu Assis Chateaubriand de Campina Grande, onde foi diretor; foi supervisor da Casa da Cultura de Pernambuco; hoje e responsável pelo intercâmbio da Casa França-Brasil e representante da Associação Cultural de Marselha. Assina Córdula