A gaivota cega (parte 6)

Raul Córdula*

Humberto Magno chegou. Estacionou seu Fusca e se encaminhou para nós.

– Este é Aristides – apresentei – estamos falando sobre pintura, você perdeu o melhor do papo.

– Olá Aristides! É pintor também?

– Sou, respondeu.

– Quero voltar à nossa conversa Humberto, aos poucos você vai se entrosando. Eu ainda coloquei um círculo branco no centro do triângulo, um círculo de trinta centímetros de raio, que acha?

– Fechou o firo. Isto para mim é uma penetração vista de frente. O círculo branco é o segmento do falo, o triângulo a vagina, o quadrado o espaço, dos limites físicos, e o retângulo azul o espaço social onde acontecem os relacionamentos.

– Você relaciona o círculo branco apenas com um corte de um cilindro? Com o corte do pênis?

– Não senhor, para mim o branco pode ser a cor do orgasmo, e o círculo o símbolo do ilimitado, do absoluto. Portanto, aí está minha interpretação: Este belo quadro que você pintou é um ato sexual.

– Não sei se alguém se excitaria diante de algo tão frio, puro e geométrico…

– Não estou falando em excitação, mas em representação.

– Há quem se excite com a Vênus de Milo – comentou Humberto.

Aristides, durante toda a conversa que tivemos na tarde morena, transformou tudo em representações simbólicas simbolizou tudo que se disse. Fiquei pensando como raciocina quem não vê, quem necessita da memória e de referência um passado distante para visualizar o mundo. Mas também fiquei pensando como a criação de uma arte que não se relaciona com a natureza pode transpor barreiras tão sólidas como a cegueira. É óbvio que Aristides não viu o quadro que descrevi para ele, mas ele o concebeu de uma forma que eu não tenho acesso, criou comigo algo que agora faz parte da natureza, mesmo que seja de uma natureza imaterial. É claro também que esta natureza existe assim como existe cyber espaço.

Tínhamos que beber, eu e Humberto. Eu estava perplexo, Humberto curioso com a conversa que perdeu. O 28 estava vazio, pedimos whisky. Nei Eduardo apareceu e um azul marinho luminoso se estendeu por sobre o armazém do porto.

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*Raul Córdula é pintor, paraibano, fundou o Museu Assis Chateaubriand de Campina Grande, onde foi diretor; foi supervisor da Casa da Cultura de Pernambuco; hoje e responsável pelo intercâmbio da Casa França-Brasil e representante da Associação Cultural de Marselha. Assina Córdula