por André Rafaini Lopes e Roberta AR
Antes de entrar em casa, cumpriu o ritual. Arrastou os pés pesadamente no carpete do elevador e bateu no paletó para tirar o pó da rua. Subiu. Em frente à porta, passou o dedo no batente, exatamente sobre uma mancha já gasta do verniz. Tirou do bolso um saquinho e, de dentro dele, um raibam de lentes arranhadas. Colocou os óculos antes de abrir a porta, tocar no interruptor e ser iluminado pela luz de mil sóis.
Já não havia mais espaço, ele sabia, mas não conseguia abandonar seu hábito de garimpar de loja em loja uma peça nova. Fazia seu percurso quase sempre aos sábados, mesmo os mais chuvosos.
Tinha seu lugar favorito para refeições nesses dias. Ao recomendar o restaurante para um colega, disse “sempre almoço lá quando compro lustres…”. Alguma coisa no ato de escolher luminárias lhe abria o apetite. Talvez o exercício voyeur de namorar as peças antes da transação. Talvez a luta para conseguir atrair a atenção de um vendedor no meio de tantos clientes medíocres. Talvez a própria aflição da negociação para que as parcelas – somadas às de compras anteriores – não aniquilassem a pensão de aposentado.
Sim, porque tinha a infelicidade de ter uma atração especial por lustres de cristal, como aquele que viu em sua única visita ao Teatro Municipal, ainda menino.
Seu prédio era antigo e o pé direito, altíssimo. Mesmo assim, era necessário engatinhar em diversos pontos da residência para explorar os espaços ou passar de um aposento a outro.
As peças tentavam subjugar umas às outras com sua imponência elaborada. O resultado era um espetáculo ofuscante e dífícil de ver de perto, desconfortável não só pelo brilho intenso, mas pela falta de espaço para quem quisesse fazê-lo.
O teto do apartamento já estava forrado de gotinhas de cristal em todos os formatos possíveis. “Acho que ainda faltam muitas formas para completar minha coleção”, pensava ele, na esperança de que fosse infinita.
Já de quatro, lembrou do primeiro lustre que trouxe para casa e que já não conseguia localizar no meio de tantos outros: um pequeno regalo que encontrou na volta para casa, pensando na sensação aconchegante do braço da mãe que o agarrava durante o fortíssimo, enquanto olhava para o caleidoscópio que se formava no teto.
A bem da verdade, não passava de um caco de vidro com um pequeno furo pelo qual passou o nylon e amarrou no estrado embaixo da cama, para onde fugia com uma lanterna durante temporais de trovoadas ou quando havia briga em casa, o que viesse primeiro. Crianças, enfim, têm seus caprichos. Tentou inutilmente localizá-lo uma vez mais, mas um simples elevar de cabeça era suficiente para resvalar nos pingentes mais baixos, fazendo tremer o delicado móbile e criando uma sinfonia de tilintares que dizia: “Tens certeza de que queres me destruir por tão pouco?”. Lustres, enfim, têm seus caprichos.
Ele já os conhecia todos. Com as costas pregadas no chão, todos os dias, se dedicava a limpar uma de suas preciosidades até onde seu braço estendido alcançava. Com uma flanela imobilizava a pedrinha e com outra tirava o pó. O trabalho não era tão árduo, tampouco se preocupava com o topo dos lustres, pois as janelas viviam fechadas e devidamente vedadas com grossos panos negros. O ataque histérico que a vizinha do prédio da frente teve no começo da coleção ainda o fazia rir: a luz que não cabia mais na sua sala invadia a da senhora e impedia que os peixes dormissem, e acabou matando de estresse um atrás do outro.
Sentiu uma estranha sensação, um arrepio na boca do estômago. Algo parecia querer lhe dizer para tomar cuidado; com o quê, não sabia. Pela primeira vez olhou para aquele emaranhado de fios e pedrinhas como alguém de fora, como se aquilo não fizesse parte dele. Mais um arrepio tomou o corpo. “Sou estranho”, pensou, e rapidamente voltou a se sentir integrado ao aconchego dos reflexos que apenas seus olhos treinados conseguiam distinguir.
Pensou ter escutado um ruído que vinha do teto, esperou que o tilintar cessasse para apurar o ouvido, mas já tinha passado.
A mãe, lembrou de novo, agora vividamente, tinha decidido sair de casa, levando o garoto que ele ainda era, naquela mesma semana em que viram pela primeira vez um lustre daquela magnitude. Ele já não sabia bem se foi na saída mesmo do teatro que soube, também não fazia diferença. A angústia só o devorou por completo no dia em que teve que deixar seu “cantinho feliz”. Era meio bobo, ele sabia, mas era assim que ele chamava. Lá estavam todos os seus amigos, era um garoto de imaginação fértil.
Do universo criado para se proteger do mundo, só restou o lustre do teatro que inventou e que tinha um nome francês, claro: la maison de mille feux.
E assim, se acabou a infância. Longe da segurança financeira do pai, foi morar num cortiço e começou a trabalhar costurando sapatos com a mãe. Na mesma época, desenvolveu uma quase incurável insônia: no escuro, enrolado como um gato sobre o colchão ao final de um estafante dia, até conseguia relaxar e esquecer as dores nas mãos causadas pela esforço de furar couro com grossas agulhas. A convivência com o soquete que pendia em fios coloridos do teto com o bulbo nu já não era tão amistosa. Aquele olho cego, buraco negro, impedia a chegada do seu sono, pousado de ponta-cabeça como um corvo telepata. Dormir? Nunca mais.
“Por que os dias passam tão rápidos e as noites tão lentas?”, pensava naquele misto de dormência e vigília. Nesse estado, foi invadido pelos hormônios da puberdade, pelo conhecimento enciclopédico adquirido na escola que, com certo custo, frequentava e pela lembrança acolhedora do seu lustre. Passou ginásio. Passou colegial. Passou o técnico. Passou o superior. Passou no concurso público. Gastou o primeiro salário todo no aluguel de um apartamento e na loja em que se tornaria habitué. Comprou sua primeira luminária de verdade: um modesto globo de vidro, leitoso o suficiente para apagar a visão macabra e garantir a ele um sono tranquilo. Agora tinha seu próprio quarto e podia dormir com a luz acesa – para o orgulho da mãe. A pobre mulher continuou, até a morte, acreditando que o filho dedicava suas noites aos romances russos ou ao estudo da Bíblia.
Poderia ter se tornado terapeuta holístico, pensou um dia. Uma colega de trabalho falou animada sobre o poder dos pêndulos e achou que se tratava disso sua coleção. Ele riu, sem graça, como se estivesse concordando. “Minha casa contém um enorme poder de cura”, divagou sozinho. Ficou imaginando as doenças que não teve pela imensa quantidade de cristais que purificavam as energias de sua casa. “Purificam minha alma”, suspirou.
Uma conexão física tinha se estabelecido e é bem possível que não fosse recente. Mas ele só sentiu os efeitos no seu corpo depois desse momento.
Como trabalhava num órgão público, tinha horários rígidos e os cumpria sempre o mais pontualmente possível para chegar logo em casa. Tinha medo de ser acometido por alguma doença grave se ficasse muito tempo longe daquele emanar energético.
Começou, então, a se gabar da boa saúde que tinha em função dos seus hábitos saudáveis fora do trabalho, falava para um colega ou outro, mas nunca deixava claro do que se tratava. “Cada um que descubra seu próprio caminho da vida eterna”, disse baixinho no canto, depois de desconversar quando alguém perguntou de um jeito mais direto.
Contou os dias até a aposentadoria. A partir daí, minimizou o quanto pode suas saídas de casa, como a de hoje, em que chegou com mais um exemplar nas mãos.
Procurou um lugar para instalar este modelo, que não era grande, pois já estava poupando o espaço quase inexistente. Foi quando o arrepio voltou. Se esgueirou pelo primeiro aposento. Não havia uma só clareira. Mentalmente reconstruiu a planta do apartamento. Sala de estar, tomada. Cozinha, tomada. Banheiro? Bem, havia o espaço sobre o chuveiro, mas não era aficionado a ponto de abrir mão da higiene para favorecer sua coleção. Não era louco. Então lembrou-se do quarto e do vão sobre a televisão, um pesado modelo de tubo – possivelmente o último a sair com aquele seletor de canais com engrenagens. A nova peça era modesta, sim, mas não menos comprida. Em vez das gotas, o lustre era composto de longos tubos de vidro ligados em cascata.
Desligou o aparelho da tomada e deitou-o sobre a tela em um cobertor. Esse era o único modo de arrastar aquele trambolho para fora de casa sem tocar em absolutamente todos os cristais mais baixos, mas apenas em alguns. No caminho em direção à porta, o chiado do roçar da coberta se mesclava ao coral de estrelas, pianíssimo. Já fora do apartamento, não sabia o que fazer com a televisão. Cogitou o trabalho de levá-la para o porteiro e a luta que seria vencer a estreita porta pantográfica do elevador. Desistiu. Puxou o restante do fio que ainda se estendia pela sala, empurrou a TV para fora o bastante para voltar a se agachar e bateu a porta, deixando para fora o último contato que tinha com o mundo. Uma pena, pois naquele momento o telejornal noticiava um dos mais devastadores tremores de terra.
Com os pensamentos tomados pela arquitetura do plano para pendurar o novo lustre e o caminho de limpeza aberto pelo cobertor, não viu a fina camada de poeira que caía do teto. E as trepidações do prédio também não se fizeram sentir. Estranhamente, nem os cristais dos cômodos cantaram.
De passagem pelo corredor, o colecionador pegou a escada que repousava na horizontal e a levou para o quarto. Ao chegar, ergueu-a lentamente para alcançar o teto, apoiando-a na parede. Naquela altura da vida, não se faziam necessárias novas perfurações. O cantinho que sobrava era uma plantação de buchas dos mais variados calibres. Talvez algum dia aquela vaga tinha sido ocupada por outro, mas era impossível precisar: um novo lustre seria acrescido ao universo. Familiar à tarefa repetida algumas centenas de vezes, subiu seguro. Assim que apoiou a base da luminária e elevou a mão para apertar os parafusos, o céu lhe agarrou.
O forro do apartamento inteiro – desgastado por anos de abusos – cedeu, criando uma chuva de estrelas cadentes. A enxurrada lavou a escada e o colecionador. Se pudesse falar, contaria do quase orgasmo que teve no milésimo de segundo entre o início da ação da gravidade e a sensação de flutuar em la maison de mille feux. Porém, da luz fez-se a escuridão. E dos finos fios que mantinham as constelações, uma rede emaranhada que lhe tomou todo o corpo. Quanto mais tentava se livrar do abraço, mais os nós se apertavam. O rosto não passou ileso. Um resistente cordão de nylon cruzava sob a mandíbula, mantendo-a fechada. Big Bang ao inverso sem socorro. Fim.
Narrativa de grande imaginação. O final, sobretudo, tá muito bem elaborado! Lindo. Parabéns!
Delícia escrever contigo, André. Ao próximo!
E obrigada, Adriano, pelos comentários gentis. Sua opinião é muito importante para nós. 😉
Alô, Adriano! Obrigado pela leitura! Alô, Robbes! Quem diria que demoraríamos 13 anos para produzirmos algo juntos! Foi uma experiência divertidíssima e deliciosa! Que venham novos contos!
Ótimo!!!!!!!!!!!!!!! Parabéns aos dois escritores, quando teremos outro conto………………
Não consegui parar de ler até o desfecho, muito bom mesmo!
Beijos
Muito bem, pessoal. Muito envolvente. Repetindo a pergunta acima: quando teremos o próximo??
mandaram muito, dá nem pra saber de quem é o quê.