Batman Terra de Ninguém: do Contrato Social ao Leviatã

por Laluña Machado*

“… Depois que o solo partiu e os edifícios tombaram, 
a nação abandonou Gotham City. A partir de então, 
apenas os valentes, os saqueadores e os insanos 
permaneceram no lugar que passou a 
ser chamado de Terra de Ninguém.”

Lançado em janeiro de 1999 e com término em dezembro do mesmo ano, Terra de Ninguém coloca-se na posição como um dos maiores arcos nas histórias do Batman. A trama foi retratada mensalmente em revistas como Dectetive Comics¸ Batman, Batman: Shadow of the Bat e Batman Legends of the Dark Knight e derivados spin-off que podem chegar a soma de 80 edições mensais que envolviam o ambiente narrativo do arco. Desenhada e escrita por várias mãos, dentre elas Dennis O’Neil, Paul Dini, Lisa Klink e Alex Ross (que fez a capa da edição de maio de Batman), a saga consolida fatos que aconteceram anteriormente em Terremoto e Caminhando para a Terra de Ninguém

Até um terremoto de magnitude 7.6 atingir a cidade de Gotham, a mesma é dada como um dos exemplos mais chulos de organização social, e era. Segundo Jean Jacques Rousseau (1712-1778), para que se possa manter o mínimo de liberdade natural do homem e ao mesmo tempo ter garantias de um bem-estar coletivo em sociedade, a mesma deve se manter sob os parâmetros de um Contrato Social. Mas o que é isso? O filósofo francês destaca que para isso deve haver uma soberania em relação à política e à vontade coletiva. Ao pé da letra isso funciona em Gotham, a cidade ainda conta com eleições democráticas para seus representantes civis como Prefeito e Promotores (nem sempre são boas escolhas, mas qualifica soberania social), contudo, quando os escolhidos se em envolvem com esquemas de corrupção e/ou associações com a máfia, também são caracterizados pela filosofia iluminista de Rousseau. Afinal, o autor também diz que o homem nasce bom, a sociedade em si que o corrompe. 

Se o filósofo tivesse tido contato com as histórias do Batman, diria que Gotham City é um dos maiores exemplos sobre suas produções direcionadas ao Contrato Social. Ainda mais que ele iria apontar Bruce Wayne como o detentor de todos os conflitos na cidade, alegando que a sua concentração de propriedade privada seria a alavanca para a desigualdade entre as pessoas e consequentemente para corrupção delas. Mas Gotham vem abaixo com um desastre natural e “ironicamente” só as propriedades das Indústrias Wayne se mantêm de pé só a Mansão Wayne desaba com seus ocupantes dentro.

A cidade que já era um caos, mesmo compondo pelo menos o básico do convívio de uma sociedade civil, agora se torna o Leviatã. Thomas Hobbes (1587-1666) atesta que sem a existência de uma sociedade civil (e mesmo com ela) a competição por riqueza, glória e segurança seria inevitável, afinal, segundo o teórico político o homem é egoísta em sua essência, que seu estado natural é de predador e sem a construção de um estado civil isso é caracterizado como “normalidade”. Pois bem, isso de certa forma acontece em Terra de Ninguém, a cidade foi dividida em territórios que são chefiados por alguns dos maiores vilões do universo ficcional do Batman como Coringa, Duas-Caras, Pinguim, Hera Venenosa e Máscara Negra. 

Do outro lado da moeda, o Batman some após não conseguir resolver os problemas de Gotham no Congresso, o governo dos EUA decidiu isolar a cidade e não tratá-la como parte do território nacional tornando-a Terra de Ninguém, nesse mesmo caminho o Comissário Gordon desiste do Batsinal e tenta resolver as coisas na base da “faca nos dentes”. Barbara Gordon como Oráculo tenta manter todos sob vigilância, mesmo que suas condições tecnológicas tenham piorado muito. Gotham está rendida a algo que o Batman não tem o menor controle, a cidade tornou-se uma região digna de games da franquia Resident Evil, ninguém entra ou sai. Segundo Hobbes, esse tipo de ambiente força a manutenção da soberania do estado através de um Leviatã, ou seja, alguém que “puna” os desertores que se negam a submeter-se ao contrato social. 

Isso acontece na figura de ninguém mais, ninguém menos que… Batman. O Homem Morcego retorna para a cidade completamente destruída, orienta os componentes da Batfamília que não se intrometam no que virá pela frente e mais uma vez tenta salvar a cidade da qual ELE precisa. Batman começa a desbancar os territórios que foram tomados por vilões e consequentemente coloca seus capangas para trabalhar para ele, na tentativa de deixar Gotham minimamente cívica. Com o tempo ele investe dinheiro em equipamento dos seus parceiros para que certas medidas possam ser mantidas, principalmente as prisões dos criminosos. Porém, mesmo com essa “necessidade” de se colocar como soberano nesse contexto, o Batman não contava que alguém tão rico quanto Bruce Wayne iria vislumbrar um contingente financeiro em Gotham a partir desse cenário. Lex Luthor entra na narrativa com intenções que legitimam os argumentos de Hobbes (competição por riqueza e glória), Luthor tem planos para “revitalizar” Gotham, porém a cidade inteira o pertenceria e não somente no sentido de poder em relação ao território, mas também no sentido financeiro da coisa. Lex seria realmente o dono de Gotham. Além disso, para ser a cereja do bolo dessa zona toda, o Coringa se coloca como “candidato” a Presidente de Gotham. 

Só que mais uma vez Batman e Bruce Wayne são colocados como peças a frente para o tão esperado xeque-mate narrativo, Bruce consegue as empresas Wayne como a maior financiadora da construção de Gotham, assim eles desqualifica os planos de Luthor e tenta deixar a cidade como era antes, minimamente encaixada nos padrões do contrato social, mesmo nesse contexto ele se coloque como Leviatã, como soberano. (Nesse final acontece um plot twist que eu não vou falar).

Sendo uma das sagas mais famosas do Homem Morcego e uma das tramas que serviram de inspiração para o Batman de Christopher Nolan nos cinemas, Terra de Ninguém mantém alguns padrões das histórias seriadas do Batman que é: Na verdade quem começa a merda toda é o Bruce, mas a narrativa tenta te dizer que não. Aí você vai lendo, o negócio vai ficando pior, o Batman quase morre e depois volta pra salvar tudo e todos sem parar pra refletir que pequenas dele poderiam ter evitado certas coisas (não o terremoto), mas as consequências dele sim. Mas dá uma tremendo texto sobre Batman e filosofia. 

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*Laluña Machado é graduada em História pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB, foi uma das fundadoras do Grupo de Estudos e Pesquisas “HQuê?” – UESB no qual também foi coordenadora entre os anos de 2014 e 2018. Do mesmo modo, exerceu a função de colaboradora no Lehc (Laboratório de Estudos em História Cultural – UESB) e Labtece (Laboratório Transdisciplinar de Estudos em Complexidade – UESB). Atualmente é membro do Observatório de Histórias em Quadrinhos da ECA/USP, colaboradora na Gibiteca de Santos e do site Minas Nerds.Sua pesquisa acadêmica tem como foco a primeira produção do Batman para o cinema na cinessérie de 1943, considerando as representações da Segunda Guerra Mundial no discurso e na caracterização simbólica do Homem Morcego. Paralelamente, também pesquisa tudo que possa determinar a formação do personagem em diversas mídias, assim como, sua história e a importância do mesmo para os adventos da cultura nerd. Contato: lalunagusmao@hotmail.com