Sim, este é mais um texto sobre como as mães são tratadas como incapazes e com condescendência
Ontem, fui passear com meu filho pelas quadras perto de casa. Moro em Brasília, é tudo muito arborizado nos arredores e ele adora ficar mexendo em tudo o que vê, bichinhos no chão, flores, dentes de leão, grama, gravetos. Choveu esta semana e tem vários galhos caídos pelos gramados. Ele topou com um bem maior que ele e decidiu explorar, eu fiquei apenas observando. Não sei de onde, surgiu uma mulher gritando: “Cuidado, mãezinha! Vai furar o olho do bebê!”. Eu disse que não tinha problema, que ele sempre mexia com essas coisas na rua, estava acostumado. Ela não me ouvia: “Morro de medo, mãezinha! Tira ele logo daí”. Gritando. Não respondi e fez menção de que viria ela mesma tirar dali o bebê que parou para ver o escândalo, mas logo voltou a quebrar as pontinhas do galho. A pessoa que estava com ela a puxou pelo braço e as duas foram embora.
Obviamente esta não foi a primeira vez em fui abordada dessa forma na rua, como se eu estivesse expondo meu filho a um perigo mortal que um desconhecido passante reconheceu imediatamente e eu, que estava com ele pertinho, não vi. E também não foi a primeira vez que a expressão “mãezinha” foi usada nesse contexto.
Eu engravidei sem planejar (você sabe que nenhum método anticoncepcional é cem por cento seguro, né? estão segura esse impulso aí de dizer que eu que não soube me cuidar) e tive o que se chama de gravidez silenciosa (quando você descobre quase na metade do caminho ou mais adiante. sim, isso existe). Fui no médico quando a menstruação atrasou pela primeira vez e uma médica que não parecia ver a minha cara de pânico soltou: “parabéns, mãezinha. tem um presentinho aí e já está grandinho”. E toda sorridente continuou nos “inhos” e “inhas”. Eu saí apavorada, tendo uma crise de hiperventilação, sentei no meio fio para respirar com ódio mortal de cada palavra insensível que aquela mulher me disse. “Ai, como você é grossa, ela só estava fazendo o trabalho dela”, alguém vai dizer. Não, ela não estava. O trabalho dela era me examinar e me orientar, inclusive na minha crise de pânico por uma situação inesperada, e não me tratar com condescendência, fazendo eu me sentir mal daquele jeito por estar apavorada com uma notícia “tão linda”, naquele mundo de princesa que ela parecia descrever. Claro que nunca mais voltei ali e encontrei profissionais que me ajudaram a superar o pânico e a ter uma gravidez tranquila (e me chamando pelo nome, sem diminutivos).
Outro dia, li num blog uma mulher contando que chamou a enfermeira de “enfermerazinha” quando foi chamada de “mãezinha”. Chuvas de enfermeiras dizendo que foi uma grosseria desnecessária, porque não dá para gravar o nome de todas as mães nos atendimentos e coisas do tipo. Sinto muito, gente, mas tem que fazer um esforço para tratar pessoas como pessoas. Isso faz muita diferença quando estamos tão vulneráveis internadas no pós-parto ou durante atendimentos do tipo. Eu sou jornalista e trabalhei boa parte do tempo em assessoria de imprensa. Trabalhei em sindicatos nacionais e cobria eventos constantemente, com mil pessoas, às vezes. E eu era obrigada, por questão de ofício, a lembrar do nome de duzentas delas ou mais, em certas situações, porque eram pessoas referência na estrutura. Daí eu anotava, recorria a colegas, a crachás. As enfermeiras tem o prontuário bem ali na cara, é só dar uma lidinha. É humilhante ser desumanizada assim, mesmo que achem que é carinhoso só porque tem um diminutivo na palavra. “Ah, mas tem gente que gosta”, outro vai dizer. Tem mulher que diz que gosta de cantada também, mas já está ficando claro que isso não é elogio (ok, essa é uma outra controvérsia, mas o exemplo cabe).
Desde que meu filho nasceu, são várias as cenas de pessoas gritando comigo porque ele está “correndo perigo”. Num dia meio frio, estava com ele no colo, sem touca porque ele odeia, e um cara passou gritando na faixa de pedestre: “esse bebê vai ficar com dor de ouvido, sua louca”. O bebê nunca teve nada além de duas gripes mais fortes, em um ano e meio (não que eu deva satisfação para ninguém). E rola direto as senhoras que têm horror a sling: “você está esmagando seu filho!”. Sim, sempre gritando.
Mas essas pessoas não estariam preocupada com o bem-estar das crianças no mundo? Não, não estão. E eu provo.
É sabido que 70% dos estupros no Brasil são cometidos contra crianças e, destes, cerca de 80% dentro de casa, na sua quase totalidade por homens da própria família . Mas a qualquer notícia desse tipo, como num caso de uma menina de onze anos que foi estuprada e engravidou do próprio padrasto, a culpa é da mãe “que não fez nada para impedir”. FOI UM HOMEM QUE ESTUPROU, não foi a mãe. Mas quem é a incapaz? Uma sociedade inteira conivente com esses crimes, porque acham que as mães é que deveriam resolver esse problema, que é conjuntural.
Quer mais um exemplo? Quando um homem faz qualquer absurdo, qual é a primeira pergunta que vem na cabeça do cidadão? Sim, lá vem a mãe como culpada de novo. E aqui podemos citar políticos, artistas, pessoas em lugar de poder… E tem os xingamentos clássicos que são uma agressão à mãe: FDP, PQP e por aí vai
Isso tudo me passou pela cabeça no momento exato em que aquela mulher gritava “mãezinha!” no meio da rua, numa situação humilhante para mim, desnecessária, que queria apenas atestar minha incapacidade em cuidar de alguém que estava bem e feliz ali, brincando no meio da natureza, a incapacidade atribuída de maneira natural e brutal a cem por cento das mães no mundo por uma parte imensa deste mesmo mundo. E ainda está reverberando na minha cabeça: “Fura o olho!”.
(este texto foi escrito em fevereiro de 2016 e continua assustadoramente pertinente)