Titãs e o dilema deontologista entre Bruce Wayne e Dick Grayson

por Laluña Machado*

O termo deontologia vem do grego no qual Deon significa “dever”, ou simplesmente ética de ação e regra. Tal conceito se aplica em relação a posicionamentos morais que devem se adequar de forma universal as características de uma sociedade. Immanuel Kant (1724 – 1804) aponta que tais predicações se ofertam na configuração de regras ou leis (valores absolutos) que devem ser respeitadas por todos, destacando que nenhuma pessoa deve ser usada como um meio para um determinado fim, “Os Seres Humanos devem ser tratados como um fim em si mesmo, nunca como um meio”. 

Considerando que Kant também traz argumentos sobre as ações em si, como: “aja apenas na máxima que você pode usar como lei universal”. Ou seja, se nossas ações não se universalizam, elas não seriam propriamente éticas. Por exemplo: é extremamente ético e pode ser considerado universal resgatar um órfão das ruas e lhe conceder habitação, alimentação, educação, afeto, etc. Porém, se formos observar tais parâmetros da filosofia deontologista refletindo sobre a relação Bruce Wayne/Dick Grayson chegaremos à conclusão que o Homem Morcego não é tão kantiano assim. 

Richard John Grayson ou meramente Dick Grayson (Robin/Asa Noturna) teve sua primeira aparição como Menino Prodígio na Detective Comics #38 de 1940, personagem idealizado por Bill Finger, Bob Kane e Jerry Robinson. A figura de um parceiro mirim foi introduzida para dar um contraponto ao ar sombrio do até então jovem Batman. A história tem como base a morte dos pais de Dick, os Graysons Voadores, acrobatas do circo Haley. O fato foi presenciado pelo futuro parceiro do Batman e tudo levava a crer teria sido um acidente, porém foi descoberto que houve um boicote do mafioso Anthony Zucco devido a uma dívida do circo, o mesmo sabotou as cordas usadas pelos Graysons Voadores. Após o crime, Dick foi levado para um orfanato e posteriormente foi adotado por Bruce Wayne. 

É inegável que Bruce fornece todo o suporte prático para a sobrevivência de Dick, mas com o decorrer dos fatos torna-se claro que as condições elencadas pelo bilionário terão um “certo preço”. Bruce resgata sim um órfão das ruas como uma atitude completamente kantiana, mas usa o garoto como um meio para um determinado fim, combater criminosos. Nesse caso, Bruce Wayne usa-se da mesma ferramenta que o fez se tornar Batman (ou ao pé da letra, uma cara que se veste de morcego para espancar pessoas em vez de fazer terapia e tratar seu trauma), treinamentos físicos, regras rígidas, lidar com dor por meio da violência, cultivar um ódio virtuoso em relação aos criminosos, isolar-se e não estreitar nenhuma relação com outras pessoas além do mordomo Alfred.

No entanto, com o decorrer das situações e inúmeros debates entre eles dois, Dick Grayson abandona o manto de Robin em Tales of the Teen Titans #44, em 1984, e torna-se o Asa Noturna, criado por George Pérez e Marv Wolfman. Porém na série recém-lançada pela plataforma de streaming da DC (DC Universe) e reproduzida pela Netflix, Dick Grayson ainda apresenta vários dilemas sobre largar o manto do Menino Prodígio ou não. 

Dick foi embora de Gotham para se tornar detetive em Chicago, contudo, alguns episódios o “forçam” a utilizar o uniforme de Robin, mesmo que haja uma negação em relação ao seu passado ao lado de Batman combatendo o crime. Ao decorrer da narrativa na série, apresenta-se vários flashs de como é a percepção de Dick sobre os procedimentos educacionais usados por Bruce Wayne, nota-se um rancor direcionado ao que o Batman representa na sua história tanto como Dick Grayson tanto como seu alter ego e isso o leva a tomar decisões que implicam no seu futuro. 

Mesmo com tamanha negação, o Dick Grayson da série Titãs se parece muito com Bruce Wayne, o treinamento e as condições das quais ele foi exposto determinaram que tipo de herói e pessoa ele se tornaria, com muitas perturbações psíquicas, como o próprio Batman, e tais justificativas vão se arrastando com o decorrer da história. Sob o olhar de Dick, nos é mostrado um Bruce Wayne que fez sim algo certo, mas com outros fins além de realmente cuidar do garoto. As ações do Batman nesse contexto são extremamente confusas, dando a entender que o Homem Morcego apenas exerceu uma espécie de trabalho compulsório com o adolescente que acabou de perder a família. Isso sem falar os dilemas internos que o próprio personagem tenta lidar, principalmente em relação à punição do assassino de seus pais. 

A série consegue externar muito bem essas demandas emocionais sobre essa relação Bruce/Dick e tais aspectos tornam-se ainda mais claros no último episódio que foi devidamente denominado de Dick Grayson. Contudo, com o mínimo de conhecimento sobre a filosofia kantiana e sobre a história dos dois personagens, chega-se a conclusão de quem é realmente Deontologista no mundo dos quadrinhos é o Superman e o Capitão América. 

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*Laluña Machado é graduada em História pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB, foi uma das fundadoras do Grupo de Estudos e Pesquisas “HQuê?” – UESB no qual também foi coordenadora entre os anos de 2014 e 2018. Do mesmo modo, exerceu a função de colaboradora no Lehc (Laboratório de Estudos em História Cultural – UESB) e Labtece (Laboratório Transdisciplinar de Estudos em Complexidade – UESB). Foi colaboradora do site Minas Nerds e atualmente é membro do Observatório de Histórias em Quadrinhos da ECA/USP, colaboradora na Gibiteca de Santos. Sua pesquisa acadêmica tem como foco a primeira produção do Batman para o cinema na cinessérie de 1943, considerando as representações da Segunda Guerra Mundial no discurso e na caracterização simbólica do Homem Morcego. Paralelamente, também pesquisa tudo que possa determinar a formação do personagem em diversas mídias, assim como, sua história e a importância do mesmo para os adventos da cultura nerd. Contato: lalunagusmao@hotmail.com